LUZES DA NOITE
Conto do meu primeiro livro: "Os comedores de vidro"
Não me cabia, ou a qualquer outra pessoa que vivenciasse aquele
instante, saber quais eram as forças propulsoras daquela mão invisível que
distribuía as cores nos pedaços picados e brilhantes das fotos que se
esparramaram flutuantes no vento. Do mesmo modo que até hoje ninguém
descobriu quem organiza o colorido de cinema das bolhas de sabão.
Rápidas e cambiantes, as cores refletidas
nos pedacinhos de papel pareciam disputar com o prateado da chuva a missão de
substituir as estrelas, que nessa noite não vieram. Em câmara lenta...
escorriam ondulantes, como uma cascata iluminada e bailarina, jorro
brilhante-cauda de cometa.
Da janela do meu quarto eu sorri. Primeiro
pela ousadia do meu gesto, segundo por que eu era poeta...
Tudo havia começado no bar. Naquela noite que era de chuva e frio. À
meia-noite e vinte, quando mirei o mostrador do relógio e busquei na
consciência a autorização para tentar de novo. À minha frente os óculos do
garçom refletiram as cores misturadas de todas as roupas, todas as garrafas,
todos os brilhos dos copos... como se duplicassem um arco-íris desorganizado.
Mirei também o ventilador do teto que liquidificava, lento e rouco, as
vozes do bar. Liquidificava ainda, em espirais contínuas, a fumaça de muitos
cigarros, as cores... Madrugada fria! A porta aberta, sugando os passantes
perdidos da noite, fugitivos dos bares já fechados. Eu já havia abandonado a
mesa dos amigos, trombado nos que entravam, e tentava, mais uma vez, no
telefone do balcão, outra ligação para Tereza. O irritante e contínuo sinal de
ocupado, do outro lado da linha, me desanimava. Com quem falaria Tereza àquela
hora? Estaria o aparelho fora do gancho? Deveria tentar de novo? Poderia (se
fosse decidido) acreditar na hipótese viável de estar o outro aparelho
desligado. Seria não sofrer. Ciumento e inseguro, arrepiei-me com a
possibilidade de outro estar ouvindo aquela voz, que até ontem era minha. No
bar enfumaçado, na madrugada fria, outras vozes, por vezes, confundiam-me.
Lembravam-me, por defeito de sintonia e mixagem imperfeita, a voz de Tereza –
mascarada nos gritos e sussurros. Passou em minhas lembranças uma sucessão de
imagens da mulher na qual eu pensava, como um filme curto e sem enredo: preto e
branco.
Olhei com desinteresse a fauna eclética do bar: homens de terno que
perdiam a sisudez, afrouxando as gravatas à medida que a noite os transformava.
Homens gordos e magros. Mulheres pintadas e despintadas à medida que muitos
abraços lhes derretiam as pinturas. Mulheres magras e gordas. Gorduras éticas e
não-éticas. Magrezas incômodas. Homens e mulheres contaminados pela química do
bar...
Pensei em um campo verde. Vi-me correndo com um cachorro amigo, numa
tarde de sol.
Ameacei, com o dedo no disco, ligar outra vez. Desisti com o barulho de
uma taça quebrando. Suspirei como se estertorasse, com um fiapo mínimo de ar
limpo que bailou à minha frente.
Se desistisse de tudo e fosse embora, perderia a chance de tirar a
dúvida. Sepultaria a chance – quase nenhuma – de reconciliação. Já eram
demasiadamente difíceis as coisas em minha vida, para assumir gestos de poucas
possibilidades. Não ousei gastar – por temer consequências – as últimas fichas
de sobrevivência daquele caso de amor. Tentaria sim, mas com a certeza do passo
dado, o perdão da namorada. Precisava disso. Questão de sobrevida. Assustava-me
(consciência de quem sabe com quem lida) a quase inviabilidade de minha
esperança.
Estava ali no bar, desde o começo da noite, quando tentei a primeira
ligação e não encontrei a voz que queria ouvir. Deixara na secretária
eletrônica o recado para que Tereza fosse ao meu encontro. Detestei – porque me
inibia e me deixava sem espontaneidade – falar com uma máquina, mesmo que
contivesse a voz de Tereza. Unilateral. Lembrei-me, no entanto – porque, desde
o dia anterior, dera para recordar – que havia sido através da secretária a
marcação do meu primeiro encontro com Tereza, há dois anos. Teria sido
preferível, no entanto, hoje no instante da ligação, falar com uma voz que me
respondesse. Se pelo menos houvesse um fio de esperança, tênue que fosse, para
me agarrar! Queria acreditar os ânimos houvessem serenado depois da pesada
noite anterior. Pensei com tristeza e desprazer na Tereza incontida,
improperante e nervosa do último encontro. Teria se acalmado? Teria ouvido o
meu recado? Tentei me convencer de que ela não atendera o recado por estar no
banho, por ter ido às compras no supermercado noturno, ter ido à portaria
buscar correspondências do dia ou ter ido simplesmente à Lúcia, sua vizinha,
buscar emprestada uma xícara de açúcar. Por que não retornara o meu chamado?
Eu não tivera um bom dia. Haviam vencido duplicatas minhas no banco, e
enfrentava a dura pressão do gerente. O dinheiro que eu tinha pouco e difícil
de ser esticado até o fim do mês. Tudo me abalava, inclusive a gastrite
renitente me queimando por dentro. Meu pigarro, de muitos cigarros,
transparecia num refluxo azedo, que me piorava o hálito. Além de tudo eu
engordava. Minha barriga dificultava amarrar os sapatos e até um gesto
prosaico, como cortar as unhas dos pés...
Talvez (pensei) fosse prudente ir para casa. Não precipitar as coisas.
Precisava me dar um tempo, afugentar a depressão, e talvez Tereza precisasse de
mais um dia. Talvez fosse conveniente deixar-me abraçar pela noite: no bar, ou
na proteção ventral do apartamento. A última era a melhor das alternativas.
Aquecer-me-ia, poderia pensar serenamente, corrigir-me ou ocupar-me de planejar
o reencontro. Talvez assim os rumos da minha vida se reorientassem. Senti um
leve aliviar da tensão.
Tomei ali mesmo, no balcão, uma última dose: saideira para enfrentar a
umidade das ruas. A bebida, no copo de cristal, olhada contra a luz, espalhou
estilhaços de cor na minha alma.
Se Tereza tivesse vindo, se tivesse aportado ali do meu lado, não
importando de onde estivesse vindo, não estaria me sentindo tão derrotado.
Tereza me faria esquecer todo o resto. Tereza era algo concreto. Minha vida?
Corrigível porque as manhãs, teimosas, insistem em trazer um novo dia, por pior
que tenham sido as noites passadas. Infelizmente, no entanto, Tereza não viera,
não respondera ao meu apelo.
Decidi então deixar os amigos e ir embora. Recolher-me na espera de que a
noite varresse os meus medos e uma nova manhã me iluminasse com alguma chance.
Deixei com os amigos um recado (sem esperança) na eventualidade de Tereza
aparecer. Constatei, enquanto atravessava o labirinto das mesas, que não me
fariam falta os amigos do bar. Nem naquela noite, nem em nenhuma outra noite da
minha vida. Três amigos dispersivos, que, principalmente naquela noite, só
haviam me irritado. Colaborado para aumentar a minha tensão. Santiago, com seu
hábito dissimulado de abraçar todas as mulheres; Isabel, com sua risada gorda e
masculina: Ismael com sua mania estranha de bochechar o vinho. Irritantes!
Paguei minha parte na despesa e saí para o frio das ruas. Atravessei a
calçada entre putas e bêbados, buscando a pé, por causa do pouco dinheiro e
porque era perto, a rua do meu prédio, Nesse trajeto pulei várias poças d’água
que refletiam neons. Não sabia que tornaria a ver, ainda naquela noite, outros
reflexos coloridos.
Subi a escada ouvindo o rangido estertorado da madeira, choros de criança
e gatas no cio. Prometi-me um banho quente, café forte e não beber mais aquela
noite.
O café, forte e quente, reacendeu a minha alma. O banho me fez vigilante.
Aconcheguei-me no calor de minha casa e olhei a janela, postando-me como um voyeur olhando a vida pública: cenário
dos desesperados da noite. Minha rua era a página policial de um jornal ao
vivo. Antro de bêbados, excluídos, prostitutas, drogados, travestis e toda essa
fauna de deserdados. Olhava-os com os olhos neutros de um protegido. Talvez (pensei
com a frieza de um pesquisador) alguns daqueles
seres pudesse ocasionar no decorrer da noite um assunto para um conto.
Acostumara-me a escrever, sempre que estava tenso. Ajudava-me a enganar
pensamentos.
A chuva – cíclica – voltou de novo com uma pancada forte e transbordou
bueiros. Um ônibus passou rangendo lonas de freio e abrindo as águas, como
Moisés e seu cajado. As cores refletidas na água misturaram-se numa coreografia
rápida, balé enlouquecido, e depois acomodaram-se de novo, como se a corda que
movimentou aquela água estivesse no fim.
Embaralhei os pensamentos, pensei na chuva, imaginei que o céu chorava e
não consegui despregar Tereza de minha alma. Poderia ter chorado como o céu,
mas não chorei. Ao contrário, vasculhei todo o trecho do quarteirão alcançável
pela minha vista: com frieza. Debaixo da marquise da agência lotérica, um homem
e uma mulher embaraçavam braços e pernas; na porta da farmácia, três mendigos
disputavam uma garrafa e se aqueciam com uma rala fogueira de papéis; no
parapeito da imobiliária, dois grafiteiros molhados de chuva escreviam textos
incompreensíveis.
A rua era um mosaico de fatos e ocorrências. Temas para muitos contos.
Bastaria, se fosse o caso, costura-los como se costura uma colcha, ou
simplesmente selecionar, garimpando entre tantos fatos os possíveis detonadores
de uma história. Fosse eu um escritor permanente e contumaz, teria essas
prerrogativas: inventar, reinventar, aumentar e transformar banalidades.
Poderia, por exemplo, pegar o casal que enredava corpos e pernas e transformar
a mulher num travesti. Pensei com ironia - porque nos últimos dias dera para
inventar formas de vingança – que o “traveco” poderia ser um gerente de banco
correto e formal que a noite transformava. Pensei em Raimundo Neves, que me
pressionava com duplicadas vencidas e por meu saldo estourado. Tão formal e
limpo o Raimundo Neves! Imaginei-o à noite botando a peruca loura, passando-se
batom e rouge e transformando-se num
simulacro de mulher. Verônica Blando – seria um bom nome. Odnumiar Seven
poderia ser o outro nome da personalidade dupla, o nome do lado masculino.
Sorri, acho que pela primeira vez nesta noite.
Poderia também transformar os três mendigos da farmácia. Quem sabe
fazê-los desafortunados, que foram um dia pessoas economicamente viáveis, que
por um desses azares incontidos da vida, um dia ficaram pobres. Pensei em dois
homens e uma mulher, porque, da distância que os via, eram inidentificáveis.
Seria também uma vingança contra Santiago, Isabel e Ismael, os companheiros do
bar. Dois homens, uma mulher e uma garrafa de cachaça. Três seres a lembrar
noites quentes de conforto, tiritando agora de frio, numa calçada de uma rua
qualquer. Dois machos animalizados pela bebida que duelariam até a morte, por
aquela mulher como se ela fosse a última mulher do mundo...
Pensei em vingar-me também de Tereza. À medida que a noite me acomodava
os pensamentos, comecei a construir uma raiva vagarosa de Tereza. Mal sabia que
aquela raiva estava se fermentando há muito, aos poucos, imperceptível,
crescendo lenta e estufando como um bolo em minha alma. Mal sabia eu do tênue
fio que separa as duas distâncias. Detestei-me, por haver deixado que ela me
humilhasse tanto. Odiei-me por ter me deixado dominar, tanto tempo, por Tereza.
Começara, ali mesmo na janela, quase sem perceber, a alimentar o sonho de
desprender-me daquela mulher que me fizera tanto mal. Pensei nos grafiteiros e
os imaginei escrevendo frases pornográficas com o nome de Tereza. Retomei a
intenção do conto e descobri que aquela era uma terceira idéia. Pensei numa
personagem aparentemente pura, católica e recatada, com o mesmo nome: Tereza.
Mulher que um dia caía na boca do povo. Por culpa de grafiteiros, terroristas
da noite que denunciavam sua vida dupla. Pensei em uma cidade acordando e em
uma pecadora desvendada. Tereza, Tereza, Tereza... pecadora! Insisti comigo
mesmo, espanando o nome, varrendo-o e carregando-o para o lixo, para um arquivo
morto – dando baixa. Eram três motes a serem desenvolvidos. Qual deles poderia
escolher?
Agora já não tinha mais pressa. Não precisava mais recompensar-me por ter
perdido Tereza, nem de autocompadecimento. Ri de novo, percebendo que, sem
nenhum esforço, e surpreendentemente sem sofrer, ela começava a ser desfocada de
minhas lembranças. Até duas horas atrás, nem me passava pela cabeça que isso
pudesse ser possível. Percebi-me com uma capacidade de reconstrução que
desconhecia. Talvez as mágoas tivessem transbordado... como os bueiros que
alagaram a rua. Senti-me reanimado. Fizera-me bem o café forte. Senti-me seguro
para evitar um novo cigarro e expeli flatulências, num ato rebelde que
denunciava liberdade.
Limpei a vidraça, olhei mais uma vez o casal, os três mendigos e os
grafiteiros, decidido a esquecer Raimundo Neves, Ismael, Isabel, Santiago e,
principalmente, Tereza. Poderia até adiar o conto.
Busquei na estante a caixa de sapatos com vinte e nove fotos de Tereza.
Repassei, uma a uma, cada foto, olhando sem emoção. Comecei a rasgá-las em
pedacinhos minúsculos. Descobri-me sentindo prazer naquele gesto. Senti-me como
que exorcizando um encosto: com alívio. Pedacinhos de mais ou menos meio
centímetro, calculados com frieza. Com frieza calculei que, somados, aqueles
pedacinhos dariam mais ou menos nove mil... dez mil e poucos. Rasgando as
fotos, matava Tereza – simbolicamente. Desejei ardentemente, por vingança, que
Tereza estivesse, nesse exato momento, descobrindo que me amava. Senti que
teria imenso prazer em recusá-la e vê-la sofrer por minha causa. Queria que ela
viesse me pedir perdão, que pelo amor de Deus eu a perdoasse, só para ter o
prazer de negar e vê-la chorando. Adorei-me por saber que não teria remorsos.
Gastei o razoável naco de tempo que se leva para rasgar vinte e nove
fotos, tamanho postal, em dez mil e poucos pedaços. Enquanto isso, pensei.
Pensei no amanhecer, que já se aventurava detrás das colinas e para o qual
deveriam faltar umas duas horas. Na minúscula fração de tempo que dura um
piscar de olhos, tomei uma das decisões mais corajosas da minha vida: fechar o
apartamento, juntar o mínimo necessário, tomar o primeiro ônibus da manhã, que
fosse para bem longe, para o interior. Arranjaria emprego em um colégio, porque
sabia, seria um excelente professor de português. Ganharia pouco, mas estaria
longe da pressão da cidade grande. Poderia voltar a escrever, sem pressa, como
gostava, longe dos momentos tensos, apenas por prazer, não mais como remédio.
Com dignidade. Poderia, quem sabe, encontrar uma moça sem neuroses, casar-me,
ter filhos, sogro, sogra, sobrinhos, macarronada aos domingos, um cachorro e
uma bicicleta. Seria reconstruir a minha vida. Para muito melhor!
Embaralhei minuciosamente os caquinhos dos retratos, tornando impossível
– quebra-cabeça imponderável – reconstituí-los.
Pensei em queimá-los, mas preferi brincar de neve... ou confete. Abri a
janela e o vento assoviou como os desejasse. Despejei-os na noite.
Misturaram-se, mais ainda, enredemoinhados... gangorrando...
Com o coração destampado de alívio, olhando a cascata iluminada bailando na chuva, assobiei baixinho o "Danúbio
Azul". E o fiz melhor, muito melhor, do que a Orquestra de Viena, em suas
melhores performances. Gorjeei como um pássaro acompanhando o balé. Voltei os
olhos para o pedaço de céu atrás dos prédios e adivinhei um sol gigante,
redondo e flamante que vinha empurrando a noite, brigando com a chuva e
descerrando as cortinas de um novo dia.