sábado, 3 de maio de 2014

Simão

Adianto um conto de meu livro futuro, por causa do episódio com o jogador brasileiro Daniel Alves. Só que este conto foi escrito em 2009 e nem se imaginava que um brasileiro responderia tão bem, e á provocação de um insulto racista.                            


SIMÃO
                                                         Geraldo Roberto da Silva 
                                                           
          
Muito já foi dito sobre os medos e ansiedades de um goleiro na hora do pênalti. Simão tinha tudo para estar vivendo essas sensações, no momento fatal dos descontos do segundo tempo, no "Coloso de la Herradura" lotado. À sua frente, Danubio López, o matador. Entre os dois, a bola de gomos brancos e negros. Atrás e nas laterais, uma massa ensandecida pronta para soltar o berro da vitória, no momento em que a rede se estufasse pela ação do chute sem misericórdia que viria tão logo o juiz apitasse. Atrás de Danubio, os jogadores de vermelho prontos para um eventual rebote ofensivo e os de azul, dispostos a espanar para longe o mesmo rebote. Todos com os corações aos saltos... Atrás desses, o gramado verde, estendido como uma infindável e grave passarela vazia, o grande muro de anúncios na parte frontal da ferradura e as luzes dos refletores brilhando à frente de um céu de estrelas. Aquele gramado tinha tradições. Histórias de sangue e batalhas campais com vencedores célebres e perdedores que a história não perdoou. Neste instante, no limiar do duelo entre Danubio e Simão, a grama era de uma cor úmida, verde escura e amarronzada pelo barro de chuteiras que o tempo se encarregaria de tornar históricas.

Por mais que se diga da gravidade que sempre foram os confrontos entre brasileiros e castelhanos, é preciso que se busque a verdade da razão ao invés da emoção, muito embora se saiba que em duelos dessa espécie, neutralidade é sempre difícil. Um dos motivos talvez tenha sido a permanente arrogância de nossos vizinhos mais ao sul do continente com a sua pretensa soberba européia, ao contrário de nós, brasileiros, multirraciais, assumidamente morenos e menos preocupados, que somos em não querer parecer o que a cor da pele nos desmentiria. E nessas histórias (incontáveis!) sempre houve e sempre haverá muita paixão dominando a verdade. A história de Simão na hora do pênalti é apenas uma, entre tantas, que talvez pela peculiaridade dos fatos ocorridos tivesse causado essa quase lenda. Com certeza, se fosse do lado contrário, a lenda se oficializaria e mais um herói nacional se adicionaria aos outros tantos daquela parte do continente, ou seja, a velha arrogância de se confirmarem os melhores em tudo seria convenientemente aproveitada.

Quem conta um conto aumenta um ponto... e a história que narro, talvez não escape desse gesto falho e humano de sempre romantizar ou exagerar o fato narrado. Não evito, até por que o fato em si, sem o bordado das palavras escolhidas, seria reduzido na importância heróica que de fato teve.
        
Importa dizer, que ao lado daquele duelo entre Danubio e Simão, havia  coadjuvantes já citados. De um lado vestindo camisas azuis e brancas, sete brasileiros restantes, tensos. Do outro lado, dez jogadores arrogantes envergando camisas encarnadas. E pra ser mais preciso ainda, permito-me dizer que se ouvia o barulho do vento noturno de agosto com suave assobio de lamento, e mais ainda, creiam, os ouvidos mais apurados provavelmente ouviam o ruflar das asas das mariposas que bailavam lentas entre os postes de luz. Falta dizer, para ser mais preciso ainda, que no ar vagava um cheiro de assado, carregado pela fumaça das churrascarias vizinhas do estádio. 
         Simão pensava no improvável. Além da defesa que deveria tentar, ainda encontrava tempo para pensar nas pernas bem torneadas de uma mulher loura... imaginária, tão voluptuosa em seus pensamentos, que por pouco talvez o fizesse se esquecer do compromisso da defesa quase impossível.
         Nessa hora tão fatal, cada goleiro tem o seu modo de reagir. Existem os que apelam fervorosamente aos santos de devoção (e nesse quesito de santos de devoção, S. Judas Tadeu é o preferido), existem os que escondem o medo num disfarçado morder de lábios ou olhos fuzilantes que encaram o batedor rebatendo o olhar do algoz com uma bravura falsa, e existem aqueles que abrem as portas da mente para que os pensamentos busquem o bálsamo de outras sensações. Simão era como os últimos. Seus pensamentos corriam livres como aquele vento noturno e choroso de agosto.

..............................................................................................................................


         "Macaquitos! Macaquitos!" - um coro de setenta mil vozes alastrou-se das populares para as sociais, como enxurrada incontida, fazendo estremecer as estruturas de concreto do velho estádio. Começou -e se espalhou como essas correntezas indomadas- quando o primeiro brasileiro apontou à saída do túnel. Uma guerra. Cada jogador brasileiro sabia disso. Sabia também que iria enfrentar pontapés com a complacência do juiz, cusparadas na cara, jogadores dopados, a torcida agarrada no alambrado, jogando toda sorte de objetos no campo e a omissão do policiamento. Era sempre uma guerra. Uma verdadeira guerra.           

            Muitos tentaram e ninguém ainda conseguiu explicar profundamente o exacerbado fanatismo das torcidas e jogadores castelhanos. Nenhum estudo psicológico ou sociológico conseguiu, até hoje, elucidar o fenômeno da transformação. Sabe-se apenas que pacatos bancários, comerciantes, professores, médicos, motoristas ou homens de qualquer profissão, transfiguram-se quando a bola rola. Fanáticos. Os jogadores, por sua vez, verdadeiros gentlemen fora do campo, transformam-se em gladiadores bárbaros quando qualquer jogo começa.
       "Sangre! Sangre!" gritava a multidão que ensurdecia os brasileiros e faria tremer qualquer um que não tivesse culhões. Fora sempre assim. Há quase cem anos. Desde que se defrontaram, pela primeira vez, um time brasileiro com um de lá.
        
         Simão sentiu e superou rápido o frio na barriga quando Melo Leal, o técnico - antes de tentar invadir o campo e ser contido pelos soldados e seus cachorros - mandou o preparador físico aquecê-lo. Pompéia, o goleiro titular, contorcia-se de dor com a pisada desleal de Fernandez, o número 11, aos quarenta e sete do segundo tempo, na faixa imponderável dos últimos suspiros daquele jogo. Só restava ele. Simão. Antero, o reserva imediato, nem viajara. Contundido há meses. Tonho, o terceiro goleiro, também se machucara desafortunadamente no treino de segunda-feira. Simão teve que pegar sozinho o primeiro vôo do dia anterior e se juntar aos companheiros. Goleiro dos juvenis, com apenas três meses de clube, foi o último atleta inscrito pelo clube para o campeonato, nem conhecia bem ainda os profissionais, nunca andara de avião, nunca na vida havia pensado em entrar numa "roubada" daquelas. Agarrar o foguete pelo rabo. Era jovem. Dezessete anos.

         Melo Leal olhou-o constrangido e com piedade, quando lhe pediu calma e disse com a voz engasgada: "Vai lá. Defende aquela porra!".
         Simão entraria em campo para tentar o impossível. Defender um pênalti. Pênalti que, se convertido, daria aos "Rojos" o título de campeões da "Libertadores". O time brasileiro havia vencido o primeiro jogo por 2 X 1 no Brasil. Pelos critérios da confederação sul-americana, gol no campo adversário valia o dobro. Portanto, bastava-lhes o 1 X 0.  A torcida deles  já trepava nos alambrados, explodindo foguetes. Cantavam hinos, batiam tambores e faziam um barulho infernal. Simão não tinha escolha. Fora jogado dentro do caldeirão. Fervente.
        
Os jornais locais publicaram manchetes na manhã do jogo: "Victoria o Muerte!", "Sucederá Hoy!", Ganaremos, aunque  sea con sangre!", "Matenlos Rojos!", "Humaredo en la Herradura!".
        Não admitiriam perder, como aliás nunca admitiram, em toda a história. Até o presidente daquele país, declarara a um jornal: "Ganaremos, sin duda alguna.". Opinião que era respaldada por todos. Havia em cada pensamento uma frase que era quase uma oração de fervor: “Esta noche, se puede, se puede...”.
        Tudo indicava que aquela era uma missão impossível. Os brasileiros ouviam os castelhanos dando as entrevistas no rádio e eles não escondiam o otimismo: “Hoy estamos mejor acoplados y las individualidades están respondiendo. Quedar afuera, no!”. 

        Aquele jogo estava sendo uma guerra. Guerra desigual, mas sustentada com bravura. Já houvera dois pênaltis, antes desse dos descontos. Pênaltis escandalosos. Só que a favor dos brasileiros e vergonhosamente não apontados pelo juiz. No primeiro, Sanchez, o número 3, tirou a bola de dentro do gol com a mão, acintosamente, depois da cabeçada de Militão. No segundo, Ortega, o número 6, deu uma tesoura voadora no peito de Altair. Na cara do juiz, dois passos para dentro, da grande área. Quando Altair reclamou, o juiz o expulsou. Os brasileiros jogariam desde os oito minutos do segundo tempo, com dez homens. Nem isso os abalou. Mantiveram a bravura, superaram-se e estavam contando com a sorte. Durante todo o jogo, o adversário atacaria mais, só que afoitamente e em vias do desespero. O tempo corria rápido e aquilo não era bom para os da casa. Até que aconteceu o pênalti.
        Em um instante, tudo pareceu conspirar contra a performance heróica mantida a duras penas.
        O pênalti. Uma vergonha! Pompéia saiu do gol, nos pés do atacante Luna, que fez a cambalhota cinematográfica e caiu se contorcendo como uma minhoca no braseiro. Pura fita! Depois, Hurtado ainda pisaria, sob os olhos do juiz, nas mãos de Pompéia, fraturando-lhe os dedos. Pura maldade! Anselmo reclamou e foi expulso. Bicalho não agüentou. Deu uma peitada no juiz e também levou vermelho. Só sobravam oito jogadores - abalados, confusos e prestes a se deixar abater pela tragédia.
         Confusão. Avelino Machado, o dirigente, invadiu o campo para protestar. A polícia o engravatou e ele saiu arrastado e levando bordoadas, perto da boca ávida dos cães “capa-pretas”. Tiveram que atender Pompéia no campo. Está na regra. Tempo para Simão se aquecer. O time brasileiro precisava ganhar tempo. Melo Leal gritava para os seus manterem a calma e sua voz era abafada pelas setenta mil vozes que cantavam. Pompéia foi retirado com violência e pouco caso pelos maqueiros e Simão entrou em campo fazendo o sinal da cruz. Ia para o fogo. Levava consigo uma toalha enrolada e as luvas descalçadas, para ganhar tempo. Aquilo provocou a torcida, que reagiu disparando rojões para baixo, quase acertando o goleiro. Nova parada. A polícia fazendo de conta que controlava a torcida. Os cães babavam e latiam ferozes. O juiz esperava. O jogo parado, talvez estendesse mais os descontos, mas era necessário esfriar o adversário. Jurandir Carvalho, o delegado brasileiro da sul-americana, entrou em campo com a prerrogativa de autoridade. A polícia tentou prendê-lo e foi contida pelo dirigente Juan Pablo Ortiz. Juan Pablo sabia que Jurandir era influente na FIFA. Jurandir prometendo incluir as irregularidades no relatório, interditar o campo, e os dirigentes foram confabular. Duraria mais um bom tempo aquela interrupção.
         Nesse intervalo, Danubio López, o número 10, aproximou-se da bola parada na marca do pênalti e ficou olhando para Simão com um sorriso de ironia. Seria ele o batedor. Ele, o carrasco. Simão, o condenado. Com cinismo, ficou encarando Simão. Um pibe... e negro. Fez um "psiu" para Simão e apontou o dedo para o canto esquerdo, prometendo chutar ali. Rindo. Danubio López perdera a conta de quantos goleiros já haviam tremido na sua presença. Era um ídolo nacional. O maior nome da seleção e em vias de se transferir para o Milan, pela estratosférica soma de treze milhões de dólares. Fazia o último jogo defendendo a camiseta roja e queria se despedir como campeão.
         Em outras circunstâncias, fosse Simão um garoto classe média e urbano, até se assustaria. Simão não era. Criado no subúrbio, no meio dos tiroteios da favela, desde os oito anos pingente de trens da Central, conhecendo como conhecia as agruras da vida, não se assustaria com aquele branquelo, metido a besta, com cara de tangueiro e cílios longos de veado. Não seria isso que assustaria Simão. No fundo, no fundo, até começava a gostar daquela bagunça. Já estivera, em outras situações da vida, em enroscos piores. Era hora de mostrar "quem tinha mais garrafa vazia para vender".
         E foi encarando o sorriso de Danubio que Simão cumpriu o seu ato. Calmamente, enquanto os dirigentes discutiam no círculo central, foi lá no fundo da rede, desenrolou a toalha que trouxera e pegou uma banana. Caturra.
Sentou-se no chão, no pé da trave, encarando Danubio nos olhos, e começou a descascá-la, vagarosamente, dizendo com um portunhol arrevesado para o Danubio atônito: "És assim que jo voy comer su mujer... tirar su roupa. Hoy, después del juego. Em mi hotel. Coñeço su mujer. Já pus mi pau muchas veces em sus coxas. E eja já chupou muchas veces mi pau".
          O inusitado da cena de um goleiro comendo banana no limiar de um pênalti causou um rebuliço nos fotógrafos e periodistas  postados atrás do gol. Sob o espocar dos flashes, Simão descascava a banana, com o zelo que se tira a camisola da mulher amada. Lambia a banana como se lambesse a perna da mulher de Danubio...
         Não existe nenhuma menção no livro de regras do futebol, a não ser que, por rigores, o juiz considere ato anti-desportivo, a proibição de que o jogador coma alguma coisa durante o jogo. Se lhe é permitido beber água e chupar gelo para matar a sede, é de se supor que seja também permitido comer alguma coisa para matar a fome. Não é comum, mas também não é impróprio. Além do mais, o jogo estava parado e o juiz e os bandeirinhas conversavam no meio de campo com os dirigentes. Aliás, há mais de quinze minutos.
         Danubio, lívido, não acreditava no que ouvia. Aquele fedelho, pobre, negro, desaforado e brasileiro, ofendia a sua esposa e a si, na frente dos seus companheiros, dos jornalistas, debaixo dos céus de sua pátria. E ainda fazendo com que ele servisse de chacota para os outros jogadores brasileiros, agora se enchendo de razão e rindo das zombarias daquele macaquito. Ele, logo ele, Danubio López, "El Gran Capitáin", que o mundo inteiro reverenciava, a maior glória esportiva de seu país. Ele, acostumado que era a ser chamado "Dios" pelos compatriotas, que morreria ensangüentado se preciso fosse, "defendiendo su  bandera"...
         Como todo latino sensível e dramático, a simples menção de que na testa lhe estufassem chifres passava a ser uma questão de honra ferida. O sorriso cínico que portava antes desmanchava-se, dando lugar a uma careta de ódio. Contido por Gualtieri, o número 7, ameaçou partir para cima do moleque, que sorria um sorriso debochado de dentes muito brancos. Danubio, arrastado para trás pelo companheiro, ainda conseguiu gritar com a voz contaminada de raiva: "Te mato! Te mato!". Limpando os dentes com a unha, Simão ainda diria, só que em português: "Se tu bobear, eu te como também!" Os companheiros de Simão, insuflados pela coragem do pivete, encheram-se de brios e descobriram um líder jovem, brotando de um campo minado.
        Se o juiz não tivesse apitado anunciando o reinício do jogo, é provável que o pau tivesse comido ali, naquela hora. O próprio Gualtieri, que segurara Danubio, chegou a fazer menção de correr de encontro aos brasileiros soqueando e chutando, quando Peroba, o lateral brasileiro, elogiou-lhe a bunda.
         O árbitro veio correndo para a área, conferindo a bola na marca e a posição de Simão debaixo das traves. Simão calçou as luvas. Sentiu que tinha enervado Danubio, quando o viu aspirar o ar antes de tomar a posição de batedor. Danubio estava vermelho de raiva, mas também - via-se - tremia. O lábio superior franzido numa contração involuntária do músculo. Simão encarando-o com um sorriso, bateu as mãos no peito, provocando-o, dizendo baixinho: "Aqui! Chuta aqui, corno de mierda!"
         Um silêncio de expectativa sobre o estádio. Setenta mil pessoas emudeceram, como se alguém ou alguma coisa, com um gesto, assim ordenasse. Emudeceram, guardando o grito para explodir tão logo o pênalti fosse batido. Só se ouvia o barulho de fósforos e isqueiros acendendo cigarros, salpicando as arquibancadas de estrelas fora de hora. O olho de Simão encarando os olhos de Danubio, que não agüentaram o duelo, abaixando-se.
         Os locutores já se preparavam para esparramar, com fôlego de carretel, o grito de gol. Quem não estava no estádio, encarquilhava-se de tensão frente aos aparelhos de tevê e rádio. Muitos já comemoravam por conta. Danubio López nunca errava. O país com os olhos cravados em Danubio.
         O juiz apitou. Danubio correu para a bola   
         Muitos espremeram os olhos. Muitos beliscaram-se. Muitos trincaram os dentes.
          O chute arrancou um naco de grama e saiu mascado como uma tacada sem giz. A bola fraquinha foi borboleteando se aninhar carinhosa no peito de Simão. Danubio perdeu o pênalti e sentiu o céu desabando em sua cabeça. Abraçado pelos companheiros, Simão, de  dezessete anos, disparou a gritar: "Eu sou foda! Eu sou foda! Jo soy fueda!"
         Um "Oh!" comprido e caudaloso escorreu pelas arquibancadas como se houvessem sido abertas as torneiras das expressões desesperadas. Danubio, transtornado pela frustração, enfiou a cara na grama embarrada e passou a soquear a própria cabeça enlouquecido, ciente, talvez, de que: "Milan, nunca más". Arrastaram-no chorando para a beira do campo, sob uma tempestade de vaias. O torcedor não perdoa. Já diziam os sábios que "dia de muito é véspera de pouco". Uma máscara dolorida de abatimento estampada na face de cada um daqueles que envergavam as camisas vermelhas. Um tango. Um tango doloroso, dramático e cruel, seria a trilha sonora adequada para aquele momento. Choravam.
         O juiz olhou para uma lateral do campo. Procurando Juan Pablo, o dirigente. Orientando-se. Temendo as influências e ameaças do Jurandir na FIFA, o dirigente fez um sinal com a mão que queria dizer: "Acaba logo essa merda!". Feito isto, explodiu a garrafa plástica de água mineral no muro de concreto.               
              Antes, a bola devolvida por Simão fora isolada por um zagueiro tonto para trás dos muros das churrascarias. Um silêncio fatal. Uma lufada de vento assobiou uma música triste. Se não fosse exagero dir-se-ia que dava para ouvir as mariposas mergulhando em vôo suicida contra as luzes dos holofotes.            
              O jogo acabaria em um minuto e doze segundos, com os brasileiros retendo a bola e fazendo-a correr de pé em pé. Ouvia-se (isso é certo) o barulho da bola roçando o gramado úmido, tamanho era o silêncio.
A torcida, engasgada com a guerra perdida, engoliu o sapo rugoso da derrota -conformando-se inacreditavelmente- abalada que fora pela inesperada defesa do goleirinho negro. Podia-se ouvir também o tom lamentoso dos comentaristas de rádio locais, como um que dizia sem esconder a voz embargada de soluços: “El baile previsto com todas las letras y en mayúsculas se convertió en una milonga sofrida. Parece um sueno... Danubio no fue Danubio. Fue apenas una palida imagen del gran capitáin. Las personas sedientas de festejo... para las que todo era un grito de orgullo nacional, quedaram-se  atónitas ante el hecho irreversible. El gran favorito se derrumbó. Quien tiene una respuesta para explicar esto? Quien tiene? Um pibe, solamente um pibe como ningún de nosotros lo hubiese soñado, fue la razon del suplicio de los rojos.... Es muy amarga la derrota... muy amarga!”.

Os brasileiros campeões na casa do inimigo. Jogavam Simão para cima, faziam festa com o herói da partida, chamando-o de "Fodão". A taça reluzente passava de mão em mão e os brasileiros cobriam-na de beijos. Simão sorrindo, com seus dentes brancos de marfim, pensava no seu minuto de fama, sem saber que acabava de inscrever naquela noite - da forma mais heróica possível - o seu nome na história.  


Importa pouco o que foi feito de Simão... talvez devesse importar mais... mas ele foi um entre tantos heróis dos estádios que passaram pela história com a rapidez de um vento ou como uma efeméride radiosa de apenas uma só noite. No entanto, enquanto essa história for contada, quantas vezes venha a ser contada, com mais ou menos filigranas de exagero, lá estará Simão, desafiando Danubio, vencendo Danubio, que é a sua forma de estar perene na história... mesmo que por uma noite apenas... “una noche inolvidable”, como diriam os castelhanos. E essa história que tomou o trajeto de lenda, poderia ser uma história comum, não fosse o jogo ter sido entre quem foi, não fosse o improvável herói, não fosse o inusitado da estratégia que um usou para bater o outro no duelo. Talvez tivesse sido mais justo que a carreira vitoriosa de Simão continuasse, assim como aquele vento daquela noite de agosto com sua voz que imitava o desespero das almas. Vento que continuou aquela noite, madrugada adentro, mesmo depois que apagaram-se os refletores, a grama deitada pelo barro das chuteiras levantou-se recuperada com o sereno da madrugada, as chaminés das churrascarias sopraram seu último hálito de fumaça e as vozes das torcidas foram se apagando à medida que cada um se recolhia. De certo modo a grama amassada, a fumaça que vagou tonta no céu soprada pelo vento de agosto e cada soluço daqueles que se entristeceram com o resultado, foram figurantes daquela passagem da história, de um jogo de bola, do momento fatal da cobrança de um pênalti... da noite gloriosa de Simão.

Um comentário:

  1. Geraldo, não sabia deste teu dom, me parece que leva jeito para a coisa. A história é envolvente e nos leva ao imaginário, as " cenas" são bem descritas e nos da tempo para também respirar e fazer parte do evento criado. Quanto ao lance da banana, fica tranquilo que não tem relação com o ato do Daniel Alves. O nosso goleiro Simão, representa tudo aquilo que na verdade o Daniel sentiu, mas não deixou aflorar. Gostei mais do ato do Simão, pensou apenas defender os interesses do seu clube esquecendo-se de ser politicamente correto. As vezes é melhor fazer como Simão, pois quem muito se abaixa .... A história é tão legal que daria muito pano para manga para comentar. Eu penso também que você devia roteirizar " lo penal y el plátano " rssss, imagina fazer um curta metragem. Gostei da linguagem usada, pertenço a esse mundo. Parabéns

    ResponderExcluir