quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

49- A perda



49- A PERDA



Numa sexta-feira, Carmela me ligou. Estava feliz. Decidira-se mesmo ir com Carlo para o Equador, e iriam naquele fim de semana a Ouro Preto para despedir-se da cidade que os fizera conhecerem-se e homenageá-la antes de viajarem. Prometeram-se refazer todos os trajetos e acontecimentos do seu primeiro dia de amor e passar um fim de semana inesquecível. Não podia dizer que não fosse. Pensei num átimo de instante que tudo poderia acontecer ali na estrada para Ouro Preto, ou então na volta. Não pude dizer nada, não pude interferir. Rezei, rezei como nunca, para estar enganado.
Carlo alugara um carro, uma Brasília. Na volta, no domingo, à noitinha, a neblina da estrada impediu-os de ver a carreta Scania-Vabis na curva. Uma ultrapassagem inconseqüente do motorista do caminhão ocasionou o choque violentíssimo de frente com a Brasília, que voou despedaçada, com os meus amigos pelo despenhadeiro.
Quem primeiro soube de tudo foi Bello Menezes. Às nove da noite ele ligou para minha pensão e pediu que eu fosse com ele ao hospital de Ouro Preto para onde retornaram com os corpos. Deveríamos, como amigos, fazer o reconhecimento. Até então, não sabíamos que Carlo tinha um irmão no Brasil: Francisco. Nós o conheceríamos ainda naquela madrugada. Ele vivia aqui, fazia dois anos, estudando agronomia em Viçosa. E foi ele que, através do consulado, providenciou remoção do corpo de Carlo para Guayaquil, onde morava sua família. Carmela, sem parentes próximos, seria enterrada em Belo Horizonte. Só localizaríamos seu tio dez dias depois quando então pudemos avisá-lo. Não conseguimos contatá-lo a tempo porque ele viajara para uma fazenda no interior e esteve todo esse tempo praticamente incomunicável.
Ele pediu-me o favor de fechar o apartamento de Carmela e doar o que eu pudesse doar para entidades beneficentes. Combinei então que um dia, se eu fosse a São Paulo, eu o visitaria.
Tudo aquilo me deixou destroçado. Findo o enterro, peguei o primeiro ônibus para Matozinhos. O que eu mais queria era ficar perto de minha mãe, Chiara e Maria Goretti. Fiquei cinco dias em minha cidade, ausente dos trabalhos e da faculdade. Minha família entendeu a minha dor, falei-lhes da amiga que perdera, e cobriram-me de carinhos.

No sábado seguinte, voltei a Belo Horizonte. João Francisco e Maria Helena contrataram uma missa de sétimo dia. Alguns amigos da pensão foram comigo. Maria Goretti chegaria depois e se juntaria a nós. Pude notar também rostos desconhecidos. Todos muito tristes. Talvez fossem seus companheiros de luta que estivessem ali para lhe prestar uma última homenagem. Confirmei isso vendo todos, ao final da missa, vindo cumprimentar Bello Menezes. A missa foi no final da tarde. O tempo chuvoso trouxe a noite mais cedo. Trouxe também mais tristeza.
Saímos dali, despedimo-nos dos amigos e fomos, eu, Marcos (um amigo da pensão) e Maria Goretti, à um bar, relaxar um pouco. Pedimos uma cerveja, e Marcos, sempre uma pessoa sensível, perguntou-me quem era de fato Carmela. Pude dizer-lhe da verdadeira identidade de nossa amiga. Primeiro, porque ele era uma pessoa de extrema confiança e segundo, porque, de qualquer modo, tanto fazia agora se todos soubessem sua verdadeira identidade. O que importava é que ela havia passado rapidamente pela minha vida. O que importava é que, apesar de tudo, ela conseguira vislumbrar um retorno à normalidade e tivera a felicidade, nos seus últimos dias, de viver um grande amor.
O fato de Maria Goretti estar ali conosco deu-me uma grande força. Era impressionante a energia positiva que aos poucos eu descobria que havia naquela mulher. Isso me ajudava muito a entender por que Chiara a havia escolhido.
Saindo dali, Maria Goretti nos deixou, eu e Marcos na pensão e foi para casa de uma tia sua, no Bairro de Santa Efigênia.
Naquela noite, sonhei com Carmela. O primeiro de muitos sonhos que eu teria. Sonhos que me tranqüilizaram. Ela estava bonita, sem óculos, e me sorria. Pareceu-me, com aquele sonho, que ela quisesse me dizer que estava muito bem.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

48- Tragédia



                  48- TRAGÉDIA




Em 1973, fiz o meu primeiro Festival de Inverno em Ouro Preto. O festival era, e ainda é, um dos mais tradicionais eventos culturais promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, oferecendo vários cursos em diversas áreas, como, artes plásticas, música, teatro, literatura e outras. Vi ali uma ótima oportunidade de integrar Carmela à vida normal e convidei-a a fazer o Festival comigo. Ela fez sua inscrição em um dos cursos de literatura. Estava eufórica. Voltar a lidar assim, efetivamente, com os estudos estava deixando-a feliz.
Planejamos felizes nossa estada em Ouro Preto, e pude, inclusive, apresentá-la, sem dizer do seu passado aos meus amigos com quem dividiríamos o aluguel de uma casa, durante nossa estada na cidade. Ela se integrou de forma plena ao grupo, que a recebeu muito bem.

Como nunca havia visto, no pouquíssimo tempo em que eu a conhecia, ela estava feliz. Mais feliz ainda porque conhecera Carlo Carbajal, um equatoriano que fazia curso de música e que também ficou nosso amigo, perfeitamente adaptado à nossa turma. Carmela se apaixonou por ele e confessou-me isso, um dia. Tranqüilizava-a saber que contou a ele tudo de sua vida passada, de sua atividade política e sua identidade dupla e tivera dele toda a compreensão. Tive, nesta nossa conversa, a oportunidade de saber também o seu verdadeiro nome, que até então, eu não sabia: Maria Lídice. Planejavam, ela e Carlo, ir embora juntos para o Equador, e seria uma maneira mais segura de ela continuar a vida, porque aqui ainda havia riscos, embora pequenos. Tudo parecia correr de forma muito feliz para a minha amiga.
No segundo fim de semana do festival, recebi a visita de Chiara. Maria Goretti não arranjara ainda nenhum outro namorado e começava a descobrir prazer em pegar seu carro e viajar. Havia se transformado mesmo em uma mulher moderna. Fora parar em Ouro Preto naquele sábado. Eu saía de minha aula no velho prédio da Escola de Minas e encontrei-a ali, recostada ao carro, me esperando. Eu já me acostumara a distinguir quando era uma, quando era outra. Já não dependia nem mesmo do cenho franzido, do jeito especial de morder o lábio e do perfume, para distinguí-las. Sabia de longe, enquanto descia as escadas, que quem estava ali era Maria Goretti, mas sabia também que, se ela estava ali, era por obra de Chiara.
Ela me cumprimentou rindo e comentando “onde é que a nossa amiga ia levá-la da próxima vez, pois nunca em sua vida tivera intenção de estar em Ouro Preto em julho, porque detestava frio, e Ouro Preto era gelado nessa época do ano”. Cumprimentei-a e convidei-a a vir comigo até o “restaurante do Chicão”, onde almoçávamos aos sábados. Combinamos, antes, que procuraríamos meus amigos. Encontramos apenas Carmela, Carlo e Júlio Espíndola. Durante o almoço, Carmela e Maria Goretti conversaram muito e puderam matar as saudades, principalmente porque Carmela, quando me falara de seu namorado equatoriano, dissera-me estar louca para contar a grande novidade para nossas duas amigas. 
Ficamos um bom tempo, nós cinco, depois do almoço, tomando o sol gostoso na praça. Mais tarde, Carmela decidiu acompanhar Carlo até a república em que ele estava instalado e Júlio saiu para caminhar um pouco.
Quando todos se foram, Chiara pôde finalmente aparecer. E foi do modo feliz que ela sempre aparecia. Deu-me um beijo estalado no rosto e disse que estava com saudades. Ao contrário de Maria Goretti, adorava Ouro Preto com o a temperatura fria, seu ar de mistério e a velha arquitetura colonial. Ficamos juntos, aproveitando o gostoso sol de meio de tarde e botamos nossas conversas em dia.
Maria Goretti voltou em seguida, pegamos o carro e fomos até a nossa casa, onde “as” convidei para ficar, visto que havia um quarto sobrando. Seria agradável tê-las conosco naquele fim de semana.
E aquela noite de sábado foi agradabilíssima. Chiara esteve comigo a maior parte do tempo, fingindo ser Maria Goretti; era mais fácil assim. Só eu e Carmela sabíamos de Chiara. De todo o modo, ela se integrou bem ao grupo e todos gostaram muito dela.
Naquela noite, Carmela nos abraçou e sussurrou baixinho para nós dois:
- No meu tempo de guerrilha, nunca tive medo de morrer. Tenho agora porque estou feliz como nunca.
Dissemos para ela não pensar em coisa ruim, em nada que atrapalhasse sua felicidade.

No dia seguinte, domingo, acordamos tarde e combinamos de ir juntos, quase todos da casa, à Mariana, pertinho de Ouro Preto. Combinamos que almoçaríamos lá e voltaríamos de trem, um tradicional passeio entre as duas cidades.
Quem foi comigo era Maria Goretti, que confessou estar gostando muito do passeio e das novidades, vendo ali uma forma de relaxar do intenso período de estudos que tivera na Universidade. E a Maria Goretti que estava comigo era, como já disse, uma pessoa de fortes premonições. Nas volta de Mariana, no vagão quase vazio do trem, estava o nosso grupo e mais umas oito ou dez pessoas. No meio da viagem, Maria Goretti pegou a minha mão. Olhei para ela, e ela estava pálida. Sua mão suada e fria apertou a minha, e ela respirou fundo fechando os olhos, dizendo:
- Vem comigo.
E fomos juntos para o fim do vagão, onde não havia ninguém. Ela, então, com um ar muito grave, disse-me que tivera ali uma premonição horrível. Viu Carmela e Carlo, acidentados, gravemente acidentados, numa estrada que não sabia qual era.
- Vi também a todos nós, seus amigos, muito tristes. - continuou.
Com os olhos fechados, pálida e com a voz trêmula, pediu-me que me preparasse para o pior.
- É inevitável. É muito triste, mas é inevitável. - completou.
Acostumado que estava ao fato de que tudo que ela dizia se concretizava, tive um choque pela gravidade da revelação. Ela apertou a minha mão e pediu-me calma. Era impossível ter calma. Eu sabia, e ela sabia. Mas sabíamos também que não poderíamos fazer nada para evitar o que ia acontecer. Sabíamos que era difícil, mas tínhamos que manter a serenidade. Não podíamos interferir no que estava escrito no destino. Só não sabíamos quando e onde tudo aconteceria. Nossa esperança era que fosse o mais distante possível. 
Não preciso dizer que os últimos dez dias daquele festival foram tensos e pesados. Convenhamos, não é fácil saber uma coisa como aquela que eu sabia e fingir que estava tudo normal. Puxa vida, eu aprendera a gostar muito de Carmela e me doía pensar que agora que ela conseguia reorganizar sua vida, arranjando inclusive alguém para amar, tudo fosse se acabar de repente, fazendo os sonhos parecerem tão inúteis. Maria Goretti, que descobrira o fato, voltou no último fim de semana para estar conosco e tentou, como eu, fingir naturalidade num momento tão difícil. Chiara, sensível ao fato, não apareceu, deixando que Maria Goretti me apoiasse, uma vez que essa se tornara, a exemplo dela, grande amiga de Carmela. No finzinho do domingo, dei um jeito de voltar para Beagá com minha amiga, disfarçando para que nenhuma outra pessoa da casa se oferecesse para vir junto. Queria estar sozinho com ela. Nós dois, que havíamos disfarçado a dor por tanto tempo, precisávamos ficar sós por causa de nossa tristeza.
Pudemos, então, conversar. Perguntei-lhe se ela já sabia quando tudo ia acontecer, e ela disse que não o sabia com precisão. Apenas sentia que estava perto. Que eu fosse forte. Pude então compartilhar com a minha amiga uma grande tristeza. Senti raiva, muito raiva por as coisas serem assim. Por tanta gente ruim estar viva no mundo, e Carmela, uma pessoa boa e sensível, ir-se tão cedo.
Chegando a Belo Horizonte, Maria Goretti levou-me até a pensão em que eu morava e parou seu carro ali na porta, ficando um pouco comigo. Foi um tempo suficiente para Chiara vir e me confortar com um abraço. Deixou-me chorar bastante, e aquilo me aliviou um pouco. Deu-me um beijo no rosto e pediu-me que tivesse calma. Maria Goretti voltou, despediu-se e disse que precisava ir. Fiquei olhando o Fusca descer a rua e virar a esquina na Avenida do Contorno, em busca da estrada para Matozinhos.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

47- Apresentando Carmela



47- APRESENTANDO CARMELA









A década de 70 confirmava no seu início, o endurecimento do Regime Militar sob o governo do General Médici. Os militares com seu aparato poderoso começaram a ganhar a luta contra a guerrilha, sufocando-a aos poucos, destruindo sua resistência através de violentos métodos de tortura e até mesmo através do aniquilamento puro e simples. Muito pouco se falava, na imprensa em geral, de que algum grupo ainda resistia. O governo, definitivamente, ganhara a batalha.

Muitos desses combatentes urbanos passaram por um treinamento de guerrilha em Cuba e pretendiam, de início, voltar ao Brasil e reorientar os caminhos da resistência, esperançosos ainda de reverter a situação. Alguns desses combatentes eram conhecidos meus e, sem me envolver diretamente, eu os ajudava, buscando uma ou outra casa de confiança na qual eles pudessem se esconder de forma provisória ou ajudando-os na escuridão da noite a trocar de cidade, por exemplo. Outros, mesmo que não fossem conhecidos, também recebiam ajuda, desde que as organizações nos pedissem. Junto comigo, muitas pessoas fizeram parte dessa rede de apoio, ajudando a muitos, que inclusive retornavam ao Brasil num momento que era quase impossível tentar alguma forma de reação.

Carmela era uma dessas pessoas. Voltara de Cuba e reentrara secretamente no Brasil em agosto de 1972. Voltara mais por que sua mãe adoecera e estava em estado terminal, com um câncer que se disseminara pelo corpo. Infelizmente, Carmela não conseguiu, como queria, chegar em sua cidade (pelo risco de ser presa, naturalmente) e não pôde, portanto, rever sua mãe antes que ela morresse. Isso lhe doeu muito. Passou um tempo grande em estado de depressão, escondida num sítio de Nova Lima, longe de seu estado, São Paulo. Quando começou a se recuperar, amigos propuseram-lhe que ficasse em Belo Horizonte, onde não era conhecida e poderia reiniciar a sua vida. Ajudaram-na a alugar um pequeno apartamento num velho edifício da Praça Raul Soares e, através de um tio, recebia uma quantia em dinheiro, já que, com a morte da mãe, tornara-se a única herdeira da família. Esse dinheiro, uma boa quantia para época, permitia-lhe viver com muita dignidade, e até a dispensaria de buscar emprego caso assim optasse.

Seus companheiros de guerrilha foram compreensivos, concordando que ela se aposentasse da luta direta, porque sabiam-na de extrema confiança, além de ter sido, em tempo de guerrilha, participante dedicada e responsável por muitas missões de alto risco. Foi-lhe permitido tentar uma vida nova, embora fosse difícil, naqueles tempos tão vigiados, recomeçar algo. Fora isso, havia ainda as lembranças tristes: a perda da mãe e as recordações que a volta ao Brasil lhe traziam de Carlos Alberto, um namorado seu, também guerrilheiro, que tombara baleado em choque com a polícia, em São Paulo, três anos antes, em novembro de 69.



Fui contatado em janeiro de 73, com o pedido de que a ajudasse no seu processo de reinstalar uma vida nova. Carmela não era seu nome de batismo, nem o nome de guerrilheira. Era o nome que constava nos novos documentos que ela recebera e que, a princípio, garantiriam a sua volta à sociedade com segurança. Conheci-a, apresentado por um amigo da rede de ajuda, num bar chamado “Hi-Fi”, na Praça Raul Soares. Ela era uma mulher alta para os padrões brasileiros, tinha os cabelos curtinhos, usava óculos de grau e pareceu-me desajeitada na roupa feminina que vestia. Ela pareceu-me ansiosa, fumando muito, um cigarro depois do outro, e deixando escapar seu forte sotaque de Brotas (cidade do interior de São Paulo), através de sua voz muito grave. Seu sotaque de caipira paulista destoava totalmente do modo de falar na cidade de nascimento que constava em seus documentos falsos. Ali dizia que ela nascera em Taiobeiras, norte de Minas, cidade de forte influência baiana, inclusive no modo cantado de falar.

Com o tempo, à medida que nos víamos com mais freqüência, fomos ficando amigos, e eu pude senti-la recuperando a confiança e vencendo as perdas afetuosas que tivera. Incentivei-a a estudar de novo e ela pôde, então, entrar num cursinho pré-vestibular para tentar um curso de pedagogia no ano seguinte. Seu sonho de infância era ser professora, confessou-me emocionada. E ela conseguiria, com certeza, se o acaso não houvesse barrado no caminho, essa sua pretensão.

Aos poucos ela voltou a sorrir, curtir seu apêzinho decorado com bom gosto e reunir seus poucos amigos para mostrar, com competência, dotes culinários que não imaginávamos. Praticamente seus amigos se reduziam a seis nomes: eu, João Francisco, Maria Helena, Rosângela Barros, Pedro Miranda e Bello Menezes, uma espécie de tio querido de todos nós, advogado e defensor incansável de presos políticos.

Uma vez, dei de presente a Carmela uma xilogravura de minha autoria e recebi em troca algo que até hoje guardo com muito carinho: uma edição quase artesanal de “Viaje a la Semilla” de Alejo Carpentier, que ela trouxera de Cuba. Aliás, a grande admiração que eu tenho pelo escritor cubano nos aproximou muito. E, mais que isso, permitiu-me arriscar a lhe apresentar Chiara, com quem praticamente iniciei a minha veneração pelo romancista.

Combinei um dia com Chiara que a levaria para conhecer Carmela, e ela então me pediu que consultasse Maria Goretti. Maria Goretti concordou imediatamente e disse mesmo que já estava acostumada com as nossas loucuras e gostava muito de aprender coisas conosco. A concordância de minhas “duas amigas” favoreceu o encontro que aconteceu num chá com bolo que Carmela nos ofereceu numa tarde de maio, com um frio gostoso e prematuro. No início desse chá, quem estava comigo era Chiara. Ela e Carmela ficaram amigas imediatamente. Depois, na mesma tarde, Chiara se foi e ficou Maria Goretti, de quem ela também gostou muito. Antes, é preciso dizer que, autorizado por minhas duas amigas, eu contei nossa história para Carmela. Ela surpreendentemente não se espantou, contando, inclusive, que um tio seu, irmão de seu pai, há muito falecido, tivera uma história muito parecida com a minha. Era praticamente igual: ele se comunicava com uma mulher através de uma outra, que igualmente sabia de tudo e concordava de ser o aparelho dessa comunicação. Igualmente, seu tio sentira uma paixão fortíssima pela primeira e soubera, com o tempo, transformar essa paixão numa grande amizade. Casou-se mais tarde com uma outra mulher, uma terceira, e viveu com ela até o fim da vida, construindo uma família de muitos filhos, netos e bisnetos. Interessante também foi o fato de que essa comunicação transcorreu num determinado período, algo, pelo que eu me lembro de Carmela contar, em torno de trinta anos.



Compartilhar a nossa história com Carmela foi agradável. A partir daquela conversa, Carmela juntou-se ao nosso amigo Antônio Amorim, já falecido, única pessoa que sabia daquela história que demarcava minha vida desde os cinco anos.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

46- A primeira exposição



46- A PRIMEIRA EXPOSIÇÃO









Em 1971 participei de minha primeira exposição: foi no Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, na Rua da Bahia. Aquela mostra deu-me a segurança de saber que aquele era o meu caminho de fato. Vendi ali o meu primeiro quadro: uma xilogravura para o pai de Heloísa, uma colega da escola.

Foi uma coletiva festiva. Participaram dessa mostra: eu, Júlio Espíndola, Beatriz Coelho, Sandra Bianchi, Márcia Piantino, Joyce Brandão, Eliane Alvim, Glaura Pereira, Rosângela Quinaud, Liliane Romanelli, Valéria, Yolanda Misky, Olímpia Couto, Lúcia Marques e Marinês Valadares. Pertencíamos à turma de Gravura de Yara Tupinambá e éramos conhecidos como os mais fanáticos trabalhadores da Escola de Belas Artes.

Aquela exposição fez muito bem para minha auto-estima. Quando ela foi programada, corri a contar para minha amiga Chiara. Encontrei Maria Goretti no centro da cidade, na Avenida Afonso Pena. Eu estava muito feliz. Maria Goretti cumprimentou-me e disse que tinha certeza de que Chiara também ficaria feliz. Caminhamos juntos como sempre fazíamos, até ao Parque Municipal, local que nós três adorávamos. Chiara surgiu suavemente, com o perfume habitual e o sorriso bonito.

- Já sei, já sei... - ela me cumprimentou rindo, dando-me dois beijos no rosto - Já sei que você tá aí todo bobo porque vai fazer a primeira exposição.

Apenas sorri, porque não conseguia esconder a felicidade. É engraçado pensar hoje, muitos anos depois, que nenhum daqueles meus colegas, nem Yara, minha professora, podiam imaginar o quanto eu fui feliz com aquela nossa primeira mostra. Eu era felicíssimo na escola. Ninguém imaginava isso, muito menos que fosse tanto. Só Chiara sabia. Chiara e minha mãe. Minha mãe, que uma vez me vira chorar quando, pesarosamente, numa fase de crise financeira de nossa família, durante meu primeiro ano, alertou-me para o risco de eu ter que parar de estudar. Fui salvo pelo sacrifício de meu irmão Christiano e devo isso a ele até hoje. Minha mãe me viu chorar aquele dia e disse-me, na época, que nunca imaginou que eu gostasse tanto assim da escola. Chiara sabia, porque sabia tudo de minha vida. E ela externava estar feliz junto comigo.

Na noite da exposição eu estava feliz. Poderia estar mais feliz se Chiara estivesse ali comigo. Eu sabia que nem sempre era possível ela comparecer às minhas festas, acompanhar-me em eventos ou ser meu par nas ocasiões em que eu quisesse. Era pena, mas era assim. Aprendi a me conformar. Tive o consolo de estar rodeado de amigos.

E, naquela noite, aproximei-me de S..., uma colega nova do primeiro ano, que eu sutilmente vinha paquerando. Até então não tivera oportunidade de fazer uma paquera de fato. Faltara o momento certo, e agora ele aparecia. Ela veio falar comigo e eu senti as pernas bambeando, naquela sensação gostosa de ansiedade. Disfarcei porque eu não era bobo e não deixei que ela percebesse. Senti que ela estava gostando de ficar ali comigo e daí pra convidá-la para sair comigo foi um pulo. Ela aceitou, eu fiquei feliz e saímos juntos naquela mesma noite. Inicialmente com boa parte do grupo que resolveu jantar junto e depois eu e ela sozinhos, num barzinho da Rua Maranhão, perto de sua casa, onde pudemos trocar idéias.

No dia seguinte, num sábado, saímos juntos de novo. Fomos ver uma peça: “O Inspetor Geral” de Gogol, com o grupo carioca “Asdrúbal trouxe o Trombone”, no Teatro Marília. Depois, numa extravagância de apaixonado, levei-a para jantar num restaurante fino.

Eu estava entusiasmado. Aprendia ali que era possível eu me apaixonar. Aprendi ali que o sentimento que eu nutria por Chiara podia ser independente daquilo tudo. Eu amadurecia. Compreendia (como ela sempre pedira) que podia ter uma vida normal. Pela primeira vez, eu estava com uma pessoa sem ficar o tempo todo pensando em Chiara.

E o melhor de tudo é que S... correspondia. Mostrou-se também muito feliz por estar comigo. Curiosa, perguntou-me “quem era a moça que de vez em quando me pegava na escola” e sorriu, abrindo a guarda e revelando estar com ciúmes.

Fui sincero e disse para ela um pouco de minha “amiga” Chiara. Ela pareceu compreender. Concordamos que o melhor era falarmos de nós dois.

Aquele namoro teve um desenvolvimento normal como todos os namoros e teve também seus momentos curiosos. No nosso quinto encontro numa quarta-feira. S... que fazia alemão no Instituto Ghöete convidou-me para ir com ela assistir, naquela quarta, ao filme “Morangos Silvestres” de Bergman, em alemão e sem legenda. Eu achei fantástica a fotografia, a expressividade dos rostos dos atores e toda a dimensão lírica do filme. Só que, não entendia patavina de alemão e descobri, com aquela experiência, os grandes sacrifícios que fazemos por amor.

Quando saímos, ela convidou-me para ir com ela na casa de uma tia, na Avenida Alfredo Balena. Sua tia, encantadora, depois de nos oferecer um café, emprestou-nos o carro. S... dirigia bem, fomos a um lugar agradável e tivemos uma noite intensa, que me deixou mais apaixonado ainda.



No dia seguinte encontrei Chiara. Levei-a para tomar um chá numa doceria na Rua Goitacazes. Ela percebeu imediatamente a minha felicidade irradiante.

- Bom te ver assim. Dá pra ler no brilho dos seus olhos que você tá feliz e apaixonado.

- Estou...muito.- Respondi. Quero dizer para você que finalmente compreendi o que você me dizia tanto. Consegui finalmente decifrar o amor que eu sentia por você.

Ela tomou as minhas mãos e beijou-as, da forma carinhosa que lhe era peculiar. Sorriu-me um sorriso lindo e sincero. Eu era feliz de tê-la assim como amiga com quem dividia os meus momentos. Mais feliz ainda eu era quando podia dividir com ela os momentos bons. Sentia-me seguro como nunca me sentira antes. Devia tudo isso a ela.



Pena que meu caso com S..., apesar da grande paixão inicial, tenha durado pouco. Alguns fatos inesperados acabaram nos separando, e ela teve que se mudar de Belo Horizonte. Tentamos ainda manter uma correspondência, mas éramos jovens ansiosos que queriam mesmo era estar perto um do outro. Não conseguimos. Interrompemos ali.

Eu ainda a veria uma vez em 1977. Mandou-me uma carta dizendo que viria a Beagá, e combinamos de nos ver um dia. Por sugestão dela, viajamos para Ouro Preto. Não conseguimos ir além dos gestos de dois amigos que se encontram: beijinhos no rosto; conversa em dia; almoço; risos; sinceridade. Momento feliz. Descobrimos ali que nossa paixão terminara e que não havia mais a entusiasmo  incontido dos primeiros tempos. 


domingo, 24 de fevereiro de 2013

45- Conhecendo o mar.



45- CONHECENDO O MAR




Conheci o mar com vinte anos. Fiquei estupefato. Meus novos amigos de Belo Horizonte preocuparam-se com o fato, tão logo eu lhes contei que não conhecia. Estávamos, nesse dia, numa aula com o professor Lodi. O ponto de partida do assunto foi eu comentar, com minha inexperiência matozinhense, que não conhecia metade dos nomes de artistas que havia passado a conhecer na Universidade.
- Vamos lá interiorano - brincou Selma Michalik, uma colega muito bonita que eu tinha no início do curso – conta mais aí, do que você não conhece.
Assustaram-se quando eu disse que não conhecia o mar. Assustaram-se também quando eu contei que conhecera uma escada rolante apenas no ano anterior, que tinha medo de entrar sozinho em elevadores e que nunca tinha tomado um milk-shake. Respeitaram-me quando eu contei dos brinquedos que eu tive e que eles, rapazes e moças da cidade grande, nunca pensaram ter. É a lei da compensação. Eu sabia que havia tido experiências insuperáveis: namorar - menino ainda – M... e E...; comer doce de talo de mamoneiro; beber refresco de jabuticaba feito na hora ou chupar jabuticaba no pé, comer arroz com pequi... E nem precisei contar a maior de todas: minha vida com Chiara.
A notícia de que eu não conhecia o mar correu. Marília contou para Sandra, que contou para Júlio Espíndola, que contou para Erenice Picinim (ele do quarto ano e ela do segundo). Éramos uma coisa só na Escola de Belas Artes. Não havia distinção de turmas. Éramos todos amigos porque a escola funcionava num prédio pequeno e acolhedor. Todos freqüentavam as salas de todos e, nos primeiros dias, por exemplo, eu já conhecia todo mundo, sabia todos os nomes.
Erenice me convidou, então, no recesso escolar do primeiro semestre, a ir conhecer o mar. Sua família tinha uma casa numa prainha pequena chamada Muriqui, no Espírito Santo. Fomos eu, ela e Júlio. Eu, com minha ansiedade, recebia um grande presente dos dois. Conhecer o mar era um antigo sonho desde a infância em Matozinhos, em que eu, criativo, inventava histórias de seres do mar, piratas e navios.
Chegamos numa sexta ao anoitecer. Eu teria que esperar a manhã seguinte para minha experiência. Naquela noite fui vê-lo de longe. Com temor e respeito. Chovia.
Mesmo não sendo a praia iluminada, pude senti-lo com sua imensidão de ondas quebrando espumosas na areia. Senti o incomparável cheiro de maresia pela primeira vez. Jantamos à beira-mar, num restaurante simples e acolhedor: um risoto de mexilhões.
Naquela noite custou-me pegar no sono. Queria que Chiara estivesse ali no dia seguinte, acompanhando minha primeira experiência de entrar no mar. Queria que ela estivesse sempre participando de tudo que me era importante.
Da casa de Erenice podia-se ouvir o ruído noturno do mar. Lembrei-me de histórias de castelos assentados em penhascos e com as ondas violentas acossando as pedras. Lembrei-me do “Conde de Arimatéia”, um personagem de histórias em quadrinhos que eu fazia em criança, nas minhas primeiras tentativas, incentivado por Chiara. Ela ditava-me em sonhos o que eu devia desenhar. O nome do personagem era sugestão dela. Ele morava num desses castelos à beira de penhascos. Suas histórias aconteciam sempre à noite.
A manhã seguinte, a despeito da chuva da noite, estava luminosa e radiante. Tomamos café e fomos para a praia. Não tenho palavras para expressar o que é a primeira sensação de entrar devagar no mar, receber no corpo as primeiras ondas e ter no horizonte aquela linha que separa água e céu. Depois, à medida que se avança mais, as ondas maiores, o medo passando a uma coragem tímida, e a coragem maior depois de tentar um mergulho, furar a onda e sentir aquele aguaceiro esparramando-se em nosso corpo como se fizéssemos naturalmente parte daquilo, daquela bênção da natureza. O primeiro contato é mágico.
Foi um dos dias mais felizes de minha vida! Devo a Erenice e a Júlio o prazer desse dia. À tarde, eu voltei ao mar. Estava mais seguro. Arrisquei mais. Mesmo não sabendo nadar, eu ia até onde dava pé.
Ficamos três dias prazerosos, mas que passaram rápido.
Na volta, em Matozinhos, busquei a alegria de contar para Chiara. Estávamos ainda em recesso. Ela se encontrava na cidade. Ela parecia saber que eu queria contar. Apareceu lá em casa. Conversamos muito, e eu pude falar de minha alegria. Ela, feliz, disse-me que sabia que aquela seria uma das maiores emoções de minha vida quando acontecesse. Aconteceu, e haveria muitas outras. Disse-me, ainda, que no futuro eu iria morar numa cidade à beira-mar. Como é que ela podia saber? Pergunto-me sempre.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

44- O ano da predição



44- O ANO DA PREDIÇÃO







O ano de 1970 me reservaria uma nova situação. Não que fosse inesperada, mas quando não se quer que uma coisa aconteça, a gente prefere pensar que ela não é possível. Vã ilusão. Aconteceu. No meio do ano, depois das férias de julho, Maria Goretti apareceu com um namorado. Era inevitável; era a ordem natural das coisas. Eu não tinha por que questionar. Maria Goretti, enquanto Maria Goretti, era uma pessoa normal. Egoisticamente, temi, por causa daquilo, que tivesse chegando o tempo de Chiara se despedir. Para meu alívio, descobri que era cedo. Não posso nem dizer que tenha havido uma diminuição de nossos encontros. O namorado dela era de Sete Lagoas, e só vinha a Matozinhos nos finais de semana. E sábado e domingo eram mesmo os dias em que eu menos falava com Chiara. Portanto, o fato não me afetou. Apesar do medo inicial.

Durante todo aquele ano, não me havia encontrado nenhuma vez com Maria Goretti ou Chiara em Belo Horizonte. Nossos encontros davam-se somente em Matozinhos. Nem os nossos horários de ônibus, de manhã, para as aulas, e nem mesmo os retornos para casa coincidiam. Por causa disso, surpreendi-me quando, logo no comecinho de agosto, numa segunda-feira, encontrei um bilhete no meu armário da Escola de Belas Artes.

“Preciso falar com você. Venha à Savassi. Encontre-se comigo, hoje às duas, na frente do Cine Pathé”. Sem assinatura, mas a letra era inconfundível. Perguntei a alguns colegas quem tinha recebido o bilhete. Márcia, uma colega, fez-me a descrição de uma moça que passara ali enquanto eu estava no laboratório fotográfico. A descrição confirmou ser ela. Torci, então, para que a manhã passasse logo.

Vinte pras duas cheguei ao local. Muito mais cedo do que o combinado. Por mais que eu estivesse acostumado, encontrar-me com Chiara ainda me dava uma certa ansiedade. Às duas em ponto ela chegou. Deu-me dois beijos, e eu adorei ter de novo aquele gesto carinhoso. Ajudei-a a carregar seus livros, e resolvemos ir a uma lanchonete na Rua Sergipe, quase esquina com Tomé de Souza. Pedimos um suco, e reparei como ela estava bonita; não Maria Goretti, mas Chiara. Era incrível a transformação que acontecia naquela mulher, quando Chiara chegava: charme, sensualidade, classe, voz rouca, luz nos olhos, sorriso exuberante. Tudo isso cercado pela aura do suave perfume mágico de gardênia. Ela falou primeiro, pegando minha mão num afago carinhoso:

- Tava com saudades de você!

Ficou alguns segundos me olhando e dando-me, também, a chance de olhá-la. Havia vezes em que não precisávamos nos falar. Bastava-nos estar juntos.

- Vê só... que idéia genial que eu tive! - ela retomou a conversa.- Aqui em Belo Horizonte, podemos nos encontrar muitas vezes, o tanto de vezes que quisermos, que ninguém nos reconhecerá. E se alguém de Matozinhos, por um acaso, vir a gente juntos, estará vendo Beto e Maria Goretti. Não há nada de mais nisso!

Concordei feliz.

- Temos ainda um bom tempo juntos - disse-me.

Fiz um ar de indagação, não entendendo o quê, de fato, ela queria dizer.

- Hoje eu já posso te dizer desse tempo que ainda vamos ter, nós dois.  Pelo menos mais uns oito anos. - emendou.

Quis saber por que e ela me disse que tinha que ser assim.

- Assim está determinado. Você terá ainda, num futuro próximo, uma grande mudança na sua vida. Você pode mesmo, e isso é quase certo, mudar-se de estado. Achei estranho, mas acostumara-me a não duvidar dela. Pensei nas armadilhas do destino e fiquei imaginando para onde é que eu poderia ir, e que determinação era essa, além de tentar calcular mentalmente em quais aventuras eu ainda poderia me meter. Mesmo assim, tentei argumentar:

- Não quero ir para lugar nenhum. Não quero mudar de estado.

- Senta aqui pertinho de mim...- ela pediu.

Eu, que estava em sua frente, sentei-me ao seu lado. Abracei-a, dei-lhe um beijo no rosto, e ela fez uma expressão triste.

- Primeiro quero te dizer uma coisa - ela falou emocionada.- quando isso acontecer, eu já terei ido embora. Eu serei uma lembrança boa para você e irei feliz sabendo que te deixo bem. Obrigado - ela continuou - por ser assim meu amigo, compreender-me tanto e gostar assim de mim. Haverá o momento, não aqui deste modo que conhecemos, que a gente se encontrará de novo, e aí será bastante possível que nós nunca mais nos separemos. Obrigado por ser tão compreensivo e não me pedir mais do que eu posso dar agora. Só quero dizer pra você ficar tranqüilo e se preparar para essa nossa separação daqui a uns anos. Você não deve sofrer. Você vai sentir saudades, mas será uma saudade gostosa. Você terá um novo caminho depois disso, uma família para cuidar, novos projetos para cumprir.

Quis saber mais, curioso, da mudança que ela previa para mim e ela me disse que talvez fosse um estado do Sul. Seria - isso era certo -, minha afirmação profissional, minha definição afetiva e uma fase de muita segurança para mim.

Não duvidei porque sabia que não adiantava.

- E tenho mais uma coisa a dizer. Você vai arranjar trabalho, um bom trabalho aqui em Belo Horizonte primeiro. Só que o Sul espera você. Isso está escrito. Posso ver você e sua família, seu trabalho e seus novos amigos. Não adiantaria, se fosse o caso, e eu sei que você não fará isso, lutar e dizer que não. Está escrito no seu destino.

Tentei ainda argumentar, falar alguma coisa...

- Mais, não posso dizer. – ela falou.

Pediu-me com um sorriso lindo que eu deixasse de ser curioso e propôs que pedíssemos outro suco. Comentou sobre Maria Goretti; estava feliz pelo fato de a amiga ter arranjado um namorado legal e sentiu que ela também teria um futuro feliz, mas previa que não seria com esse namorado. Comentou ainda que era enorme a gratidão que sentia por Maria Goretti. Ficava feliz porque a sabia, também, muito protegida. Afirmou ainda que, aos poucos, eu e ela ficaríamos um pouco mais amigos.

- Tantas coisas estranhas nos acontecem - eu disse – e fico sempre tentado a exigir de você uma resposta que talvez você não possa me dar. Com todos esses anos, por mais que na maior parte do tempo eu evite questionar ou pensar muito, um momento como esse, que sinto, é de revelações, me força a perguntar, falar de minhas curiosidades. Porque é tudo assim tão diferente? Porque meus sonhos são tão reveladores? Porque o mesmo cenário, a mesma impressão de tempo? Porque?

Eu a sentia triste cada vez que eu a inquiria desse modo, sentia que ela suspirava como se buscasse forças para dizer que me negaria respostas, ou então, eu sabia: suas respostas eram incompletas, tangenciavam minhas dúvidas, mas não me prestavam esclarecimentos.

- Eu sei que você quer saber muita coisa e sei também que eu nunca te digo. Confie em mim, é só o que peço.

Chiara tomou a minha mão e abrigou-a entre as suas, com carinho. Beijou-me o rosto e pediu que eu a olhasse. Com seus olhos extremamente profundos, como se me desvendassem a alma, ela repetiu:

- Confie em mim. Não deixarei, nunca, que nada de ruim te aconteça. Tem coisas que é melhor você não saber. Aquela resposta me fez entender que nem sempre eu poderia ter minhas dúvidas esclarecidas.

Naquela tarde, ela me fez ainda lhe prometer uma coisa: nunca me envolver diretamente em conflitos políticos. Sabia que eu ajudava uns amigos que sofriam perseguições do Regime Militar e pedia-me que tivesse cuidado. Disse que apreciava a maneira despojada como eu e outras pessoas nos entregávamos àquele tipo de ajuda, mas temia, por mim e pelos meus amigos, que nós nos entregássemos mais àquela luta do que podíamos. Via-se, ali, que o controle que ela tinha do meu futuro e de minhas ações, era parcial e relativo. Havia, em minhas atitudes, a ação do livre arbítrio. Eu deveria ser responsável pelos meus atos.

Chiara parecia saber que muita coisa ainda me aconteceria. Algo, no entanto, dizia-me que ela estava tranqüila quanto ao meu futuro. Isso me fazia supor que eu não corria perigos. Deveria, é claro, manter a serenidade e conservar o bom senso.

Como ela falava do meu futuro com tanta segurança, arrisquei uma afirmação:

- Pelo visto, não vou para o exterior fazer os cursos que eu quero?

- Não, você não vai.- respondeu – Mas você vai ajudar outras pessoas a ir. Você poderá ir, sim, a passeio, bem mais tarde, daqui a alguns anos. Nada por agora.

Abro aqui parênteses nesse relato, para confirmar que ela tinha razão. Não fui, estudar como eu pretendia. Ajudei um pouco Cristina e Maria Célia, duas amigas, anos depois, em 1976, com aulas de Modelo Vivo, preparando-as para uma escola de arte na França.



E tivemos um resto de tarde agradabilíssimo. Tão bom que não vimos o tempo passar. Acertamos, ali, que pelo menos uma vez por semana nos encontraríamos. Aquela possibilidade me deixava muito feliz

Voltamos juntos para Matozinhos, no ônibus das 18 horas, como Betinho e Maria Goretti, dois amigos e colegas, que haviam se encontrado “por acaso” na rodoviária.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

43- Máscara negra





 
43- MÁSCARA NEGRA






Mudava-se para melhor. A passagem dos dias me confirmaria isso. Mesmo que eu começasse a sentir que estava próximo o momento em que eu perderia Chiara. E foi no reveillon, na passagem de 69 para 70 que cometi uma loucura.
Durante todo o dezembro, Chiara não “aparecera” para falar comigo. Até mesmo Maria Goretti, eu estava vendo pouco. Ela, conforme já disse, estava um ano na minha frente em sua vida escolar. Já fazia faculdade e, conseqüentemente, isso fez os meus encontros com Chiara se tornarem mais difíceis naquele ano. Mesmo assim, nos raros momentos em que esteve comigo, como Chiara, incentivou-me a estudar, ajudando-me muito no vestibular.
Naquele baile de reveillon, como todos os anos, tradicionalmente depois da meia-noite a festa virou carnaval. No brinde da meia-noite, quando todo mundo se cumprimentava, varri o salão do clube com os olhos à procura de Maria Goretti. Encontrei-a, e como antigo colega de ginásio e colégio dei-lhe um abraço e dois beijos no rosto. Tinha esperança de encontrar ali, naquele momento, Chiara. Não encontrei. Era mesmo Maria Goretti.
Bebi um pouco além da conta e novamente percorri o salão com os olhos atrás de minha esperança. Alguns amigos portavam um lança-perfume. Pedi-lhes que molhassem o meu lenço... De repente um grande torvelinho na minha cabeça, o som da música reverberando como um disco em rotação errada, um arrepio fantástico suprematizando todas as sensações...
Maria Goretti dançava com uns amigos, cheguei dançando, peguei-lhe a mão e a arrastei dali, tomando-a literalmente de seus amigos. Até aí tudo normal porque éramos dois colegas estudantes dançando. Era uma noite absurdamente quente. Ela disse que tinha sede e propôs sairmos um pouco antes de dançar. Ela passou na mesa de seus amigos e pegou uma garrafa de Coca. De repente, tudo muito rápido, sem tempo pra ter juízo, a orquestra atacou de “Máscara Negra”. Na hora do verso: “...vou beijar-te agora...” dei-lhe um beijo na boca. Ela recuou assustada, sem caracterizar propriamente uma rejeição.
- Por que você fez isso? - perguntou-me.
Eu não soube responder, principalmente porque passava o efeito da lança-perfume e percebera que minha esperança de encontrar Chiara naquela noite, morria ali. Restava ainda a bobeira “do depois” quando se cheira a lança. Quem viu, e houve gente que viu o beijo (Lucinha de Dona Vitiza, João Alves, Neuza e Branca de Nina, Margot Pezzini, Milton Garrafa e outros) não deve ter entendido nada. Até então, a cidade não nos vira juntos assim, numa situação como aquela. Pedi desculpas a ela, disse que era carnaval e fui perdoado. Perdoou, pediu licença e, por via das dúvidas, não quis mais dançar comigo naquela noite.