20 – NOVAS EXPERIÊNCIAS
Era uma sensação boa morar no centro da cidade. Tudo
era muito diferente do jeito bucólico da vila da Usina. Não que Matozinhos
fosse uma cidade grande naquela época, aliás, até hoje não o é. Em 1960 deveria
ter uns nove, dez mil habitantes apenas, o que fazia todo mundo se conhecer,
haver a paz de se deixar as portas das casas abertas e todos, de alguma
maneira, serem amigos. O chamado centro da cidade distinguia-se do resto por
conter o prédio da prefeitura, a Igreja Matriz Bom Jesus de Matozinhos, uma das
mais bonitas que eu conheço, o prédio dos correios, um sobradão colonial onde
ficava o fórum, um pequeno hotel, duas agências bancárias, algumas lojas e
alguns bares. Havia a praça, boa para se namorar, com um coreto de pedra e um
movimento intenso de carros, porque a estrada federal passava no centro da
cidade.
De todos na minha casa, Christiano era o
mais popular em Matozinhos. De certo modo eu o invejava por isso. Aliás,
influências de meus irmãos nunca me faltaram: com Zezé, aprendi o espírito
aventureiro. Ele foi o primeiro a tentar horizontes maiores na capital; de
Luciano, aprendi a vocação para o desenho, algumas malandragens da vida e a
gostar de cinema. Tudo o que aprendi a respeito dessas coisas eu devo a ele. Com
Lúcio, aprendi a gostar das cartas, de uma mesa de pôquer, buraco, canastra ou
pif-paf. Tudo sem exageros, é claro, apenas pela excitação de ganhar ou perder,
sem extravagância, jogando com amigos.
Incomodou-me, numa certa época, meus
irmãos vigiarem demais os meus passos, como uma superproteção. Mas hoje,
reconheço, aquilo tudo era para o meu bem.
Viver em Matozinhos naquela época não
demandava nenhum tipo de perigo. O máximo de animação que havia, de vez em
quando, era uma ou outra briga em algum baile contra os rapazes de Sete Lagoas
ou Pedro Leopoldo, que vinham nas nossas festas dançar com as moças da cidade.
Nunca participei de nenhuma dessas
brigas, embora tivesse vontade. Era engraçado: quando acontecia de os
matozinhenses brigarem com os pedro-leopoldenses, por exemplo, recebiam sempre
apoio e reforço dos sete-lagoanos. Quando brigavam com os de Sete Lagoas, eram
os de Pedro Leopoldo que entravam a nosso favor. Impressiona como tudo passa: é
claro que já não existem mais os bailes como antigamente, mas houve um
determinado momento em que as brigas foram rareando, rareando, até acabar.
Talvez aqueles contendores tivessem envelhecido, e as novas gerações que os
sucederam não se preocupassem em dar continuidade àquela rivalidade tola entre
cidades. Houve uma vez, é verdade, que tive uma enorme vontade de começar uma
dessas brigas. Era um baile de debutantes, em 68, acho. Eu estava numa mesa com
N, a quem eu fazia uma paquera leve, e um aspirante fardado do CPOR tentou
tirá-la para dançar. Eles estavam no baile porque alguém teve a idéia de
convidá-los para a primeira valsa das debutantes. Nós, os rapazes da cidade,
achamos ridícula aquela coreografia marcial na valsa “Danúbio Azul”; as meninas
suspiraram emocionadas. Quando ele veio com aquele garbo forçado de militar,
quase meti a mão na cara dele na cara, chegando mesmo a me levantar para fazer
isso. Contiveram-me alguns amigos, N reprovou a minha atitude, e eu, além de
perdê-la, não consegui dar aquele soco pretendido.
E é uma característica do matozinhense
ser apaixonado, ter esse furor patriótico de encarar a cidade como se ela fosse
uma nação. Uma vez, muitos anos depois, no comecinho da década de 70, houve um
programa na TV Itacolomi, das Emissora Associadas, chamado “Mineiros frente a
frente”, no qual as cidades disputavam a cada semana um determinado número de
provas, com caráter eliminatório: quem perdesse ficava fora. Nunca vi
empolgação maior em nossa cidade. Vencemos Ituiutaba, Ipatinga e Juiz de Fora,
cidades, todas elas, muito maiores que a nossa. Éramos uma espécie de Davi
enfrentando Golias. Fazíamos muita festa, íamos em caravana, dezenas de ônibus
para o auditório do Palácio do Rádio, de onde o programa era transmitido para
todo o estado. Isso animava nosso “fervor patriótico”!
Toda essa agitação dos anos 60 foi
fermentada no finalzinho dos anos 50, na agradabilíssima Matozinhos que eu
descrevi. Havia um clima de entusiasmo no Brasil inteiro por nossas conquistas
como a Copa do Mundo na Suécia, o sucesso internacional da Bossa Nova, o começo
de nossas experiências mais criativas e Brasília, quando de sua inauguração, o
nosso grande orgulho. Eram os fantásticos “anos dourados”. Juscelino, o
presidente, mesmo contestado, em alguns aspectos era considerado um homem
moderno, arrojado, criativo e cosmopolita. Naquele tempo, começamos a acreditar
que o Brasil tinha um grande futuro como nação. Pena que os militares, que
tomaram o poder anos depois, engessaram esse progresso. Esse progresso
transparecia nos primeiros carros nacionais que minha geração conheceu. Eu me
encantava com os Gordini, Dauphine, Vemaguete e Aero-Willys, produtos pioneiros
da indústria nacional. Eu era fanático pela leitura semanal da revista O
Cruzeiro, que me atualizava com as notícias do mundo. E, por incrível que pareça,
eu talvez fosse a única pessoa do Brasil que gostava dos “jornais” antes dos
filmes, o célebre “Canal 100”.
Traziam as notícias do Brasil, mostrando os nossos focos de progresso. Tudo
aquilo me fazia ser cada vez mais apaixonado pelo Brasil.
Matozinhos experimentava a grande
mudança: recebia uma fábrica mais pujante e moderna, a fábrica de cimento. A
cidade tornava-se mais cosmopolita pela convivência com os franceses diretores
da fábrica. Talvez fosse, nessa época, a cidade mineira onde mais se falava
francês, língua aprendida com entusiasmo no Ginásio, por causa de nossos
ilustres visitantes. O futuro se encarregaria de provar que o francês que eu
aprendi viria a ser muito útil, anos depois, quando encontrei Brigitte. Essa
pujança de progresso trouxe também muitos forasteiros para a cidade, visto que
a nossa fábrica de cimento era uma das principais abastecedoras da construção
de Brasília, que se estenderia ainda por muitos anos daquela década. Com esses
forasteiros vieram também suas famílias, a maioria de Andradas, cidade do sul
de Minas. Essas famílias trouxeram também seus filhos e filhas, principalmente
as meninas, algumas muito bonitas e com um curioso e simpático sotaque de
influência paulista, carregado de “erres”. Eu namorei uma delas e gostei muito.
Naquela passagem de 1960 para 61, uma
coisa também me animava: comecei a sonhar constantemente com Chiara. Imaginei,
assim, com aqueles sonhos, que aquilo fosse um sinal de sua possível volta. E
isso se confirmaria, para minha alegria. Era uma questão de ter paciência.