50- CONHECENDO
O TIO DE CARMELA
Naquele ano eu comecei a trabalhar como assistente de
uma professora da escola, a artista Yara Tupinambá. Realizamos murais para a
Assembléia Legislativa do Estado e para a Câmara de Vereadores de Belo
Horizonte. Trabalhei também com ela num projeto de resgaste de arcas, baús e
oratórios mineiros do século XVIII. Reproduzíamos as peças, fazíamos uma ampla
pesquisa iconográfica, executávamos as réplicas e distribuíamos entre as casas
de decoração. Foi um sucesso de vendas.
Houve uma ampla repercussão na imprensa e meu pai ficou feliz de ver meu
nome e minha foto aparecer pela primeira vez, em um jornal. Mostrou orgulhoso
para todos os seus vizinhos.
Uma grande encomenda dessas peças foi feita por uma
importante casa de decoração de São Paulo. Trabalhamos um bom tempo para
atender aquele pedido. Quando Yara enviou as peças, a transportadora não foi
muito cuidadosa e algumas delas chegaram ao destino com pequenos arranhões e
estragos na pintura. Yara encarregou-me então de viajar a São Paulo, ir até o
deposito dessa loja e restaurá-las, no local.
Viajei numa quinta-feira à noite, calculando que, em
um dia (sexta-feira) eu teria tempo suficiente para as correções. E assim foi
feito. Eu havia calculado também que aproveitaria o sábado e o domingo, para
tentar um contato com o tio de Carmela, na cidade de Brotas.
Antes de irmos para Ouro Preto e termos aquele triste
episódio de sua morte, Carmela me dera o endereço e o telefone do tio. Seu nome
era Josias Antônio Carvalhaes. Por medida de segurança, ela não podia fazer
contato com ele. Pediu-me então que, quando fosse possível, eu lhe entregasse
uma carta. Eu ainda não o havia feito e, como não houve jeito de avisá-lo a
tempo dos funerais, não havia ainda conseguido conhecê-lo.
Estando em São Paulo, pude então tentar o contato. Do
hotel, fiz contato com a fazenda. Consegui, depois de várias tentativas, que o
telefone atendesse. Ele ficou feliz de falar comigo e pareceu-me contente pelo
fato de eu estar em São Paulo. Propus a ele ir até Brotas e ele disse que seria
um prazer me receber.
Tomei um ônibus no sábado de manhã, bem cedinho e
percorri os 261
quilômetros que separam Brotas de São Paulo. Cheguei
onze, onze e pouco e consegui localizá-lo. Ele me esperava ansioso. Foi fácil de
achá-lo porque, à época, Brotas era uma cidade bem pequenininha e ele havia me
dito que me esperaria num jipe vermelho. Além disso, eu havia viajado ao lado
de um senhor da cidade de Jaú, que o conhecia e disse que me ajudaria a
encontrá-lo quando chegássemos.
Ele me recebeu com um abraço afetuoso. Disse que
queria muito me conhecer porque sabia que eu havia sido um dos mais importantes
amigos de sua sobrinha, antes dela morrer. Quem havia lhe falado a meu respeito
havia sido alguém da organização de apoio, que era também o encarregado do
repasse do dinheiro que ele mandava mensalmente para Carmela. Ele lamentava
profundamente, haver sido privado, por segurança, de poder vê-la, sua única
sobrinha e único parente que restara depois que morreu sua irmã, a mãe de
Carmela. Engraçado é que ele se habituara a chamá-la de Carmela como todos nós.
Às vezes falava Maria Lídice, mas a maior parte do tempo usava o seu nome dos
documentos falsos.
Fomos até sua propriedade, uma bonita fazenda chamada
São Jerônimo, na localidade de Torrinha. Ele, viúvo e sem filhos, vivia ali com
a família do capataz e mais uns cinco empregados. Tinha negócios em Jaú, em
Campinas e Ribeirão Preto, para onde viajava seguidamente. Por isso havia sido
tão difícil localizá-lo quando da morte de Carmela. Naquela época, não havia a
telefonia rural desenvolvida como hoje. A mãe de Carmela, quando viva, morara
ali com ele, tendo inclusive transferido para lá todas as coisas da filha.
Entreguei a ele a carta de Carmela, que foi lida com
lágrimas nos olhos. Amava a sobrinha como a filha que nunca teve. Sofreu muito
com Solange, sua irmã, quando Carmela estava na guerrilha. Sabia os perigos que
ela passava. Ficou aliviado quando soube que ela conseguira ir para Cuba. Teve
pena dela não ter podido ver a mãe, antes de morrer.
Pude, com emoção, conhecer um pouco mais da história
de minha amiga, seus álbuns de foto, diplomas de mérito da vida colegial e até
os seus livros de poesia (autoria dela) escritos com uma caligrafia caprichosa
e irrepreensível. Textos bons, fortes e sensíveis. Abri seu armário de
brinquedos e pude perceber ali, pelo estado de conservação, o mesmo capricho
que eu notara em seu apartamento bem decorado. Impressionou-me que alguém tão
organizada e metódica vivesse, à época da guerrilha, no mato e sem conforto.
Seu Josias insistiu que eu escolhesse entre aqueles
objetos, uma lembrança para mim. A princípio recusei, por achar que não tinha
direito, mas ele fez questão e aceitei agradecido. Escolhi uma medalha de Santa
Bárbara, a “Iansã” (deusa dos ventos e das tempestades), de quem Carmela,
mística fervorosa, era tão devota. Nada poderia me fazer lembrar mais dela.
Tenho essa medalha guardada até hoje comigo e me sinto protegido com ela.
Tomei o ônibus de volta para São Paulo na tarde do
domingo. Ele pediu-me que mantivesse contato. Eu prometi que assim o faria.
Voltei para Belo Horizonte no domingo, com a sensação
boa de ter cumprido a promessa que eu fizera à minha amiga. Naquele ano troquei
ainda muitas cartas com Seu Josias. Ele se apegou muito a mim, porque eu era
uma referência para que ele se lembrasse da sobrinha. Fico feliz de ter
contribuído para dar a ele um pouco de felicidade.
Visitei-o ainda três vezes: uma vez, na data de
aniversário de Carmela (19 de setembro), quando ele mandou celebrar uma bonita
missa. Tive oportunidade, na igreja, de dar o meu depoimento sobre minha amiga;
outra, quando os amigos da sobrinha fizeram a ela uma homenagem bonita,
denominando com seu nome, mesmo que de forma não oficial, uma linda cachoeira
do Rio Jacaré-Pepira, um rio famoso da cidade, e a última, em 77, quando foi
tomado de muitas saudades e pediu-me que fosse conversar com ele. Cheguei a
passar uma semana na fazenda. Aproveitei para desenhar e descansar depois de um
período de muito trabalho.
No dia 02 de novembro, dia de Finados, ele veio a Belo
Horizonte e pediu que eu o acompanhasse até o cemitério. Depositamos no túmulo
de Carmela um lindo ramalhete de flores, e ele se emocionou muito. Planejava
levá-lo à minha casa em Matozinhos pra que conhecesse meu pai. Mas não foi
possível. Ele tinha diabetes e sofreu uma crise de hipoglicemia ainda no hotel.
Ajudei-o a ir à clínica de um médico amigo meu, e ele ficou, por precaução, um
dia internado. No dia seguinte, recuperado, teve que voltar a Brotas, premido
pelas obrigações de trabalho.
Fiz, ainda, através de cartas, muitos contatos com ele
até a sua morte em 1987. De certa maneira ele se apegou muito a mim, e eu
aprendi a gostar dele como se fosse também meu tio. Alguns meses antes de morrer,
emocionado, numa carta ele me pediu que divulgasse para as pessoas o verdadeiro
nome de Carmela. Queria que todos soubessem como ela verdadeiramente se
chamava. Cumpri o seu pedido avisando a todos que a conheciam. De certo modo,
neste livro, dou também seqüência ao cumprimento dessa promessa, contando a
todos o seu verdadeiro nome.
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