quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

48- Tragédia



                  48- TRAGÉDIA




Em 1973, fiz o meu primeiro Festival de Inverno em Ouro Preto. O festival era, e ainda é, um dos mais tradicionais eventos culturais promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, oferecendo vários cursos em diversas áreas, como, artes plásticas, música, teatro, literatura e outras. Vi ali uma ótima oportunidade de integrar Carmela à vida normal e convidei-a a fazer o Festival comigo. Ela fez sua inscrição em um dos cursos de literatura. Estava eufórica. Voltar a lidar assim, efetivamente, com os estudos estava deixando-a feliz.
Planejamos felizes nossa estada em Ouro Preto, e pude, inclusive, apresentá-la, sem dizer do seu passado aos meus amigos com quem dividiríamos o aluguel de uma casa, durante nossa estada na cidade. Ela se integrou de forma plena ao grupo, que a recebeu muito bem.

Como nunca havia visto, no pouquíssimo tempo em que eu a conhecia, ela estava feliz. Mais feliz ainda porque conhecera Carlo Carbajal, um equatoriano que fazia curso de música e que também ficou nosso amigo, perfeitamente adaptado à nossa turma. Carmela se apaixonou por ele e confessou-me isso, um dia. Tranqüilizava-a saber que contou a ele tudo de sua vida passada, de sua atividade política e sua identidade dupla e tivera dele toda a compreensão. Tive, nesta nossa conversa, a oportunidade de saber também o seu verdadeiro nome, que até então, eu não sabia: Maria Lídice. Planejavam, ela e Carlo, ir embora juntos para o Equador, e seria uma maneira mais segura de ela continuar a vida, porque aqui ainda havia riscos, embora pequenos. Tudo parecia correr de forma muito feliz para a minha amiga.
No segundo fim de semana do festival, recebi a visita de Chiara. Maria Goretti não arranjara ainda nenhum outro namorado e começava a descobrir prazer em pegar seu carro e viajar. Havia se transformado mesmo em uma mulher moderna. Fora parar em Ouro Preto naquele sábado. Eu saía de minha aula no velho prédio da Escola de Minas e encontrei-a ali, recostada ao carro, me esperando. Eu já me acostumara a distinguir quando era uma, quando era outra. Já não dependia nem mesmo do cenho franzido, do jeito especial de morder o lábio e do perfume, para distinguí-las. Sabia de longe, enquanto descia as escadas, que quem estava ali era Maria Goretti, mas sabia também que, se ela estava ali, era por obra de Chiara.
Ela me cumprimentou rindo e comentando “onde é que a nossa amiga ia levá-la da próxima vez, pois nunca em sua vida tivera intenção de estar em Ouro Preto em julho, porque detestava frio, e Ouro Preto era gelado nessa época do ano”. Cumprimentei-a e convidei-a a vir comigo até o “restaurante do Chicão”, onde almoçávamos aos sábados. Combinamos, antes, que procuraríamos meus amigos. Encontramos apenas Carmela, Carlo e Júlio Espíndola. Durante o almoço, Carmela e Maria Goretti conversaram muito e puderam matar as saudades, principalmente porque Carmela, quando me falara de seu namorado equatoriano, dissera-me estar louca para contar a grande novidade para nossas duas amigas. 
Ficamos um bom tempo, nós cinco, depois do almoço, tomando o sol gostoso na praça. Mais tarde, Carmela decidiu acompanhar Carlo até a república em que ele estava instalado e Júlio saiu para caminhar um pouco.
Quando todos se foram, Chiara pôde finalmente aparecer. E foi do modo feliz que ela sempre aparecia. Deu-me um beijo estalado no rosto e disse que estava com saudades. Ao contrário de Maria Goretti, adorava Ouro Preto com o a temperatura fria, seu ar de mistério e a velha arquitetura colonial. Ficamos juntos, aproveitando o gostoso sol de meio de tarde e botamos nossas conversas em dia.
Maria Goretti voltou em seguida, pegamos o carro e fomos até a nossa casa, onde “as” convidei para ficar, visto que havia um quarto sobrando. Seria agradável tê-las conosco naquele fim de semana.
E aquela noite de sábado foi agradabilíssima. Chiara esteve comigo a maior parte do tempo, fingindo ser Maria Goretti; era mais fácil assim. Só eu e Carmela sabíamos de Chiara. De todo o modo, ela se integrou bem ao grupo e todos gostaram muito dela.
Naquela noite, Carmela nos abraçou e sussurrou baixinho para nós dois:
- No meu tempo de guerrilha, nunca tive medo de morrer. Tenho agora porque estou feliz como nunca.
Dissemos para ela não pensar em coisa ruim, em nada que atrapalhasse sua felicidade.

No dia seguinte, domingo, acordamos tarde e combinamos de ir juntos, quase todos da casa, à Mariana, pertinho de Ouro Preto. Combinamos que almoçaríamos lá e voltaríamos de trem, um tradicional passeio entre as duas cidades.
Quem foi comigo era Maria Goretti, que confessou estar gostando muito do passeio e das novidades, vendo ali uma forma de relaxar do intenso período de estudos que tivera na Universidade. E a Maria Goretti que estava comigo era, como já disse, uma pessoa de fortes premonições. Nas volta de Mariana, no vagão quase vazio do trem, estava o nosso grupo e mais umas oito ou dez pessoas. No meio da viagem, Maria Goretti pegou a minha mão. Olhei para ela, e ela estava pálida. Sua mão suada e fria apertou a minha, e ela respirou fundo fechando os olhos, dizendo:
- Vem comigo.
E fomos juntos para o fim do vagão, onde não havia ninguém. Ela, então, com um ar muito grave, disse-me que tivera ali uma premonição horrível. Viu Carmela e Carlo, acidentados, gravemente acidentados, numa estrada que não sabia qual era.
- Vi também a todos nós, seus amigos, muito tristes. - continuou.
Com os olhos fechados, pálida e com a voz trêmula, pediu-me que me preparasse para o pior.
- É inevitável. É muito triste, mas é inevitável. - completou.
Acostumado que estava ao fato de que tudo que ela dizia se concretizava, tive um choque pela gravidade da revelação. Ela apertou a minha mão e pediu-me calma. Era impossível ter calma. Eu sabia, e ela sabia. Mas sabíamos também que não poderíamos fazer nada para evitar o que ia acontecer. Sabíamos que era difícil, mas tínhamos que manter a serenidade. Não podíamos interferir no que estava escrito no destino. Só não sabíamos quando e onde tudo aconteceria. Nossa esperança era que fosse o mais distante possível. 
Não preciso dizer que os últimos dez dias daquele festival foram tensos e pesados. Convenhamos, não é fácil saber uma coisa como aquela que eu sabia e fingir que estava tudo normal. Puxa vida, eu aprendera a gostar muito de Carmela e me doía pensar que agora que ela conseguia reorganizar sua vida, arranjando inclusive alguém para amar, tudo fosse se acabar de repente, fazendo os sonhos parecerem tão inúteis. Maria Goretti, que descobrira o fato, voltou no último fim de semana para estar conosco e tentou, como eu, fingir naturalidade num momento tão difícil. Chiara, sensível ao fato, não apareceu, deixando que Maria Goretti me apoiasse, uma vez que essa se tornara, a exemplo dela, grande amiga de Carmela. No finzinho do domingo, dei um jeito de voltar para Beagá com minha amiga, disfarçando para que nenhuma outra pessoa da casa se oferecesse para vir junto. Queria estar sozinho com ela. Nós dois, que havíamos disfarçado a dor por tanto tempo, precisávamos ficar sós por causa de nossa tristeza.
Pudemos, então, conversar. Perguntei-lhe se ela já sabia quando tudo ia acontecer, e ela disse que não o sabia com precisão. Apenas sentia que estava perto. Que eu fosse forte. Pude então compartilhar com a minha amiga uma grande tristeza. Senti raiva, muito raiva por as coisas serem assim. Por tanta gente ruim estar viva no mundo, e Carmela, uma pessoa boa e sensível, ir-se tão cedo.
Chegando a Belo Horizonte, Maria Goretti levou-me até a pensão em que eu morava e parou seu carro ali na porta, ficando um pouco comigo. Foi um tempo suficiente para Chiara vir e me confortar com um abraço. Deixou-me chorar bastante, e aquilo me aliviou um pouco. Deu-me um beijo no rosto e pediu-me que tivesse calma. Maria Goretti voltou, despediu-se e disse que precisava ir. Fiquei olhando o Fusca descer a rua e virar a esquina na Avenida do Contorno, em busca da estrada para Matozinhos.

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