sábado, 16 de fevereiro de 2013

37- O retrato de Chiara



37- O RETRATO DE CHIARA



Eu sou uma pessoa que dorme pouco. Poucas horas de sono me bastam e desde pequeno eu sou assim. Por isso leio muito, por isso também eu penso muito e escrevo. Considero mesmo que dormir é um tempo perdido. Tenho a avidez de produzir, de ler ainda um monte de coisas que eu não li, de escrever ainda muita coisa que não escrevi, e ter condições, rigoroso que sou, de atentamente conferir detalhe por detalhe de tudo o que eu me proponho fazer. Gosto de ser assim. Mais que isso, preciso, pela minha natureza, ser assim. A noite, inclusive, é maravilhosa para trabalhos intelectuais. O silêncio, a casa dormindo, nenhuma interferência. É quando meu trabalho rende mais.
Uma vez, numa noite de pouco sono, resolvi, de memória, pintar um retrato de Chiara. Na realidade, um retrato de Maria Goretti, mas no qual eu pudesse traduzir o olhar de Chiara e sua expressão do rosto, que é muito particular. Sei que é difícil ao leitor entender que as duas tenham essa diferença, mas têm. Só Chiara tem aquele modo de morder levemente o lábio inferior quando fala algo sério e medita. Só Chiara franze o cenho daquele modo quando está preocupada ou, fazendo um certo charme, finge estar. E eu quis capturar isso num retrato, mesmo sem a modelo, e pintando de memória.
Já disse que desenho desde criança. Pintar, pintar mesmo, comecei de modo autodidata quando comprei as primeiras tintas em 1963. Fiz várias experiências pintando a paisagem de minha janela, detalhes do meu quintal, alguns vasos de flor de minha mãe e até algumas experiências com auto-retratos, olhando-me no espelho. Hoje não me considero um pintor, propriamente. Faço-a esporadicamente e em situações especiais. Minha verdadeira atividade é o desenho. Naquela época eu ainda não tinha isso bem definido.
Armei o cavalete e distribuí as tintas na paleta, escolhendo cores claras porque um retrato de Chiara deveria ser suave. Esclareço, também, que normalmente eu não pinto assim como tentava naquela noite. Evito a representação clássica e acadêmica e, desde muito tempo, busco uma figuração particular com um traço menos convencional e mais contemporâneo. Defendo mesmo a idéia de que o pintor não tem de fazer o que a máquina fotográfica pode fazer melhor do que ele. Mas eu queria pintar Chiara da maneira mais perfeita que eu podia. Aquele era um caso especial.
Sofri tentando conseguir durante umas duas horas, e nada. Havia sempre um defeito: um traço pesado que quebrava a suavidade da pele, uma expressão densa contrastando com o que eu buscava, e até mesmo a luz que eu queria dar nos olhos falhava.
Tentei tudo e estava quase desistindo.
Abri a janela. A noite estava quente e bonita, com uma lua enorme e um céu cheio de estrelas. Resolvi então sair para o quintal de minha casa. Meus pais e todos já dormiam. O quintal da minha casa nova era imenso, da frente até os fundos, de comprido, ocupava todo um quarteirão. Desci até o fundo, até a cerca limite com a rua.
Lembro que apesar da hora, o vento trazia uma música que vinha de longe, uma música italiana, parecia a voz de Sergio Endrigo.
Fiquei um tempo imaginando de onde vinha. Lembrei-me das “Barraquinhas de São Sebastião”, tradicional festa em benefício da igreja. Era época de elas acontecerem, e provavelmente era de lá que vinha aquela música. Fiquei olhando o céu. Encantado com tantas estrelas.
De repente, do lado das “Três Marias”, revi as luzes, as mesmas luzes que vi uma vez no bambuzal de Zé Fonseca e da viagem de volta de Sete Lagoas. As mesmas cores, as mesmas trocas, a mesma coreografia. Dessa vez demorou um pouco mais. Espantava que outras pessoas não as vissem, embora àquela hora da madrugada, se houvesse mais alguém nas ruas, seriam pouca gente. Pensei nos que ainda estavam nas festas de São Sebastião olhando para o céu também e vendo o que eu via. Não era a minha primeira vez, mas era como se fosse, tamanho o encantamento que elas me proporcionavam. Sabia, naquele momento, que elas não tinham relação nenhuma com Chiara, como uma vez havia pensado. Não tive medo, mesmo assim.
De repente, elas fizeram um trajeto diferenciado: um movimento rapidíssimo de leste a oeste, tão rápido que ficava um rastro (um fio) luminoso no céu. Na volta, a mesma velocidade. Depois, postaram-se de novo no meio do céu, repetiram a coreografia das espirais e desapareceram de repente, sem deixar o mínimo vestígio, a mínima marca, o mínimo sinal.
Olhei aquilo tudo extasiado e não entendi, mais uma vez, os significados. Chiara me disse, um dia, que bastava entender essas visões como algo lindo. Pensar assim não era suficiente para mim. Queria saber mais. Aliás, queria saber mais, muito mais, de muita coisa que acontecia em minha vida.
Meditei olhando o céu vazio de depois, só com as estrelas de praxe. Acreditava que elas ainda pudessem voltar. Desejava-as mais. Como das outras vezes, aquilo não se repetiu.
Voltei ao meu quarto. O forte cheiro de terebintina, produto que eu usava para dissolver as tintas, havia se impregnado em todo o quarto. Abri as janelas e recostei-me de roupa mesmo na cama. Dormi. Fui acordado mais tarde com uma sensação estranha, um zumbido forte em meu ouvido e uma tonteira leve que senti quando me sentei na cama. Alguma coisa me botou de pé, fez com que eu acendesse as luzes do quarto e buscasse de novo o pincel para pintar. Eu, apesar da zonzeira do corpo e do zumbido fino no ouvido, tinha noção de tudo que eu fazia. Misturei vermelho-de-cadmio com branco até conseguir um rosa clarinho, coloquei uma pitada suave de carmim e adicionei um pouquinho de ocre. Pronto. Conseguira o exato tom de pele de Maria Goretti. Uma pitada de preto misturado ao azul, um leve toque de sombra nas pálpebras e encontrei o toque que faltava para o olhar de Chiara. Resolvia-se ali, em pouquíssimos minutos, os problemas daquele retrato que me afligiram toda a noite. Dei-me por satisfeito.
Aos poucos, o zumbido afastou-se de meu ouvido, a zonzeira do corpo foi dando lugar a um sono leve. Fechei a janela do quarto, o cheiro forte do solvente fora carregado para fora pelo vento, e dormi. Um sono intenso e reparador.

No dia seguinte de manhã, confirmei que não havia sido um sonho. Estava ali o retrato de Chiara, ou de Maria Goretti, ou das duas. Importava que eu havia conseguido representar aquele rosto e particularizar, no detalhe daquele olhar, a expressão de Chiara.
De manhã, saí às ruas na esperança de encontrar alguém que houvesse visto as luzes. Não ouvi comentários. Vi o ritmo normal da cidade confirmando-me que ninguém havia compartilhado comigo aquele espetáculo.
Na tarde daquele dia, procurei Maria Goretti com a tela embrulhada e lhe dei de presente. Ela abriu, ficou feliz, surpresa e elogiou minha habilidade. Sabia que quem eu buscara naquele retrato era Chiara, não ela.
No dia seguinte, na hora dos estudos, foi Chiara quem veio ter comigo. Entrou em casa, me deu um abraço, dois beijos e agradeceu o retrato.
Eu correspondi àquele abraço e agradeci, silencioso, as luzes do céu.
Maria Goretti tem esse retrato até hoje e, segundo ela, poucas pessoas o sabem...

Nenhum comentário:

Postar um comentário