sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

36- Formatura do Ginásio



36- FORMATURA DO GINÁSIO






Quando eu fiz quinze anos, o mundo e o Brasil, já não me pareciam tão agradáveis. Assustava-me o futuro daquele regime imposto pelos militares, embora eu, no início, sem maturidade alguma, até houvesse pensado que aquilo seria o melhor para o país. Acompanhei atento o começo lento e progressivo da repressão, disfarçado no agrado que era feito à classe média. Comecei a me preocupar vendo o tipo de colaboração que essa classe média fazia, dando “ouro para o bem do Brasil”, por exemplo, numa campanha nacional que movimentou a sociedade. Vi, também, uma velha professora aposentada de minha cidade doar o seu anel de formatura, algo que deveria ser muito importante para ela. Nunca mais se soube desse dinheiro arrecadado. Pelo menos nunca vi ninguém prestar contas do que foi a soma de todos os donativos.
Eu, nessa época, tive medo de assumir-me como pessoa madura, embora quinze anos ainda fossem apenas quinze anos. Acontece que eu era precoce. Sentia-me com vinte, vinte e tantos, às vezes, tamanha a seriedade das coisas que eu pensava. Incomodava-me, desde essa época, as desigualdades sociais, por exemplo. Alguns bolsões de pobreza em Matozinhos eram o que estava ao alcance dos meus olhos. Via o trabalho que meu pai e seus amigos confrades faziam na Sociedade São Vicente de Paula e os admirava.
Tive aos quinze anos minha fase mística. Comecei a participar com ele, meu pai, como vicentino e cheguei a vislumbrar para mim um futuro como religioso. Durou até dezembro daquele ano a minha fé. Aos poucos abandonei a igreja, para tristeza de meus pais. Tive aquela fase de questionar o luxo do Vaticano e outras riquezas da igreja. Tive também a fase de achar um absurdo o celibato dos padres. Mas não deixei de acreditar em Deus. Acreditava nele à minha maneira e parei de ver aquele cerimonial das missas e deveres católicos como uma obrigação.
Refugiei-me na leitura. Li desesperadamente aquele ano, como já contei, sozinho ou com Chiara. Tive também a fase de escrever, sozinho ou em companhia dela. Tive ainda minha fase de me vestir de preto, usar um chapéu que me dava um ar rebelde, não tomar sol e aprender a beber e fumar.
Precisava de um trabalho, dinheiro para o cigarro, pelo menos. Naquele ano comecei a trabalhar no “Cachorro-Quente”, manhã e tarde por causa dos estudos. Durante as férias trabalhava no turno da noite, que era o horário que eu mais gostava.
Senti que precisava de uma namorada. Arranjei uma, A... . Ela também era boa companhia. Eu é que talvez não tivesse sido uma boa companhia para ela. Fui pouco cuidadoso, não fui gentil e fui, em muitos casos, absurdamente machista. Não sinto saudades dessa fase. Sinceramente não. Não sei como ela me suportou tanto tempo, com minha pouca sensibilidade da época. E é engraçado, porque eu transpirava o peso de minha depressão: não sorria, falava pouco e tinha constantemente um ar de enfado.
Sentia-me perseguido pelo mundo e pouco compreendido. Não sei como as pessoas a quem eu atendia no bar interpretavam isso. Faltava-me a gentileza de um sorriso tão necessária para aquele tipo de trabalho que eu começara a fazer.
Naquele ano, o segundo semestre, ao contrário do primeiro, não possibilitou muitos encontros entre mim e Chiara. Houve um período, de março a junho (primeiro semestre do Ginásio), em que nos encontrávamos para estudar, ler, escrever, ouvir música e conversar quase toda a semana, conforme já relatei. No começo do segundo semestre, em agosto, começou a haver uma retração em nossos encontros, e lá pelo meio de setembro, separamo-nos praticamente por dois meses (até o fim de outubro). Em novembro nos vimos quatro vezes, e em dezembro, duas, uma delas em nosso baile de formatura e outra, na véspera de Natal.
Em nossa festa de formatura tivemos a missa na igreja e depois a entrega de diplomas no Cine Municipal. Todos os pais estourando de orgulho, inclusive os meus, principalmente minha mãe. Quase que a decepciono, dizendo que não queria ir e relutando muito para usar terno e gravata. Salvou a minha noite Chiara, por préstimo de Maria Goretti, dando-me um recado rápido na igreja antes da missa:
- Não faça sua mãe ficar triste. Dê a ela essa alegria. - E emendou com um pedido - Quero dançar com você hoje.
Pediu que eu a olhasse nos olhos, segurando-me pelos ombros.
- Isso não é um pedido. É uma ordem. Chega de ser tão bobo e vê se conserta sua vida. Seus amigos não merecem isso. Sua mãe, muito menos.
Convenientemente eu havia rompido com A... quase um mês antes. Estava me sentindo liberto e sem novos planos amorosos, embora sentisse ainda o peso da depressão. Com esforço, dediquei-me mais aos amigos. E voltei fanaticamente a ler e a escrever.  Foi nesse ano que comecei a ficar mais amigo de Aluízio, João Pezzini e Tanius, que viriam a ser meus parceiros inseparáveis no Científico e meus melhores amigos até hoje.
Aquele ano de 65 viria a ser também o ano em que eu passaria a levar a sério quatro cabeludos de Liverpool que mudariam a minha vida e de toda uma geração. Quem primeiro me falou deles, dizendo que tinha certeza de que eu ia gostar muito, foi Maria Goretti, naquela que foi a sua primeira manifestação de amizade e atitude de me fazer um agrado. E ela tinha razão. Bastara-me ouvir com atenção os primeiros discos. Foi uma espécie de contagiante paixão à primeira vista. Num instante, num curtíssimo período de tempo, eu João, Tanius e Aluízio começamos a trocar discos e letras das músicas que transcrevíamos com o nosso inglês limitado da época.

Naquela noite da formatura realizamos o baile comemorativo na sede velha do Clube da Cominci, antigo prédio da Cooperativa, no bairro da Estação.
No meio da noite, aproximei-me da mesa de Seu Alcides e Dona Maria. Cumprimentei-os pela formatura da filha e tirei-a para dançar. Dançamos umas três músicas. Chiara estava ali desde o começo e deu-me um sorriso lindo. Alertou-me para o estado para que eu estava me encaminhando descuidando-me da saúde. Disse-me que não queria aquilo. Pediu-me uma postura mais positiva perante o mundo e que contivesse um pouco o cigarro e a bebida. Ela não gostava de me ver assim.
Fiquei consternado, senti-me seguro de ter ali, naquele momento importante de minha vida, a minha amiga mais querida; repensei em segundos todas as bobagens que eu estava fazendo e decidi mudar. Aquele finalzinho de 65 iria assistir a minha vida retornar ao normal. O próximo ano seria melhor, ainda mais tendo Chiara por perto.
Tive vontade de beijá-la ali, mas sabia que não podia. O conjunto musical tocou “I’m gettin’sentimental over you”, colei o meu rosto ao dela e dançamos enquanto as luzes do clube diminuíam de intensidade, até a penumbra.

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