34- PODERES... VIDA CIGANA.
Não poderia deixar de citar - até porque já toquei no
assunto no capítulo anterior -, algumas ocorrências com Maria Goretti,
acontecidas esparsamente, mas que, num determinado momento, fizeram-me pensar
que ela era tão poderosa, ou quase tão poderosa, se é esse o termo, quanto
Chiara.
Já disse que nunca me aprofundei no que se pode
considerar como incomum nessas comunicações, assim como parei mesmo de ficar
buscando respostas para os fatos acontecidos a partir de um certo momento de
minha vida. Eu não tinha esse domínio e, conseqüentemente, não poderia ter
respostas. Peço, mais uma vez, compreensão ao meu leitor.
Um dia, Chiara me alertou para o poder de Maria
Goretti. Como tudo que ela me ensinou, aquilo também parecia indicar que era no
momento certo, até porque, depois daquela explicação, ocorrências entre mim e
Maria Goretti, provariam isso.
-Minha amiga é poderosíssima...-, ela disse, mordendo
suavemente o lábio inferior como era de seu costume - ela tem sangue cigano nas
veias e pertence a uma casta de sábios armênios poderosíssimos.
Citou nomes: Lázaro Ardzruni e um poeta notável,
Nersés Glaistsi. O primeiro, segundo ela, era descendente direto de um tal de
Gregory Kwiek, austríaco, proclamado “rei dos ciganos” no século passado, e o
segundo era considerado mago por várias cortes européias, tendo sido protegido
de reis e rainhas. Maria Goretti, cujo nome seria “Irina”, (caso permanecesse
entre os seus) não sabia o poder que tinha. Tudo isso Chiara escreveu num papel
(que tenho até hoje) como se traçasse um diagrama.
Lembrei-me, então, de Maria Goretti ter me contado que
fora buscada por Seu Alcides e D. Maria numa colônia armênia do Paraná, mas na
época ela não me havia feito qualquer menção sobre o seu sangue cigano. Talvez
- eu pensava - nem mesmo ela soubesse desse detalhe. Eu, por minha vez, quando
falara com ela, também não quis fazer tal referência, por se tratar de um
assunto muito delicado. Afinal, envolvia as razões que haviam feito sua mãe, ou
sua família, entregá-la para adoção. Só mais tarde, muito mais tarde, nos
estertores de nossa relação, falamos sobre o assunto e ela me tranqüilizou,
dizendo que sabia de tudo. Sabia também que quando eu contasse nossa história
eu iria usar nomes falsos e ela não se importaria.
Chiara alertou-me ainda para a capacidade premonitória
de Maria Goretti, dizendo-me mesmo, que nem ela própria tinha noção da dimensão
desse seu potencial. Não me impressionava o fato de Chiara falar aquelas
coisas. Confundia-me, isso sim. Já não sabia, por exemplo, até onde uma
influenciava a outra, que tipo de interferência havia nas comunicações de
Chiara comigo, por obra de Maria Goretti. E se eu pensava em premonição,
pensava, por exemplo, na notícia que eu tivera, da morte do seu Antônio Amorim quase
na hora do fato acontecido. Quem havia me dado? Chiara ou Maria Goretti? Nem eu
sabia mais. O que me parecera naquele dia era que Maria Goretti avisara que ia
me falar uma coisa e, que depois, Chiara tivesse vindo e falado.
Para que vocês entendam que Maria Goretti não era uma
pessoa comum, vou contar um fato: uma determinada noite, no Ginásio, a aula
acabou mais cedo porque o professor do último horário tivera uma indisposição.
Ficamos ali, um pequeno grupo, no portão do Ginásio conversando e tentando
arrumar alguma coisa para nos divertir naquele resto de noite. Maria Goretti
também ficou ali, embora fosse raro ela participar daquelas pequenas reuniões.
Gilberto Diniz, um colega, propôs que fôssemos a um terreiro de quimbanda pelos
lados da Vargem do Roque, (subúrbio de minha cidade) porque disseram-lhe que o
ritual era muito curioso. Eu concordei em ir, mesmo fazendo, como sempre faço,
restrição ao sacrifício de animais feito por algumas religiões de origem
africana. Nem todos toparam ir, mas me lembro que aceitaram, Maria Goretti
(surpreendentemente), mais uns dois ou três colegas que se juntaram ao grupo.
Gilberto Diniz, me lembro, que fora o propositor, acabou não indo conosco.
Chegamos depois de passar por várias ruas escuras e entramos no recinto de
cerimônias, no chamado terreiro, que era um espaço semi-aberto, com cadeiras em
fila, um teto de zinco decorado com muitas samambaias de plástico e um forte
cheiro de incenso. À frente das cadeiras, o altar principal, onde se postavam
dois rapazes, puxadores de ponto e seus instrumentos (atabaques). Ao fundo,
iluminando o altar, dois lampiões de gás e uma mesinha contendo oferendas:
charutos, cachaças, quindins e outras coisas que não consegui identificar. O
que minha memória lembra é que no início do ritual um senhor alto e gordo, de
cor negra, acho que o curandeiro, pai-de- santo, ou o nome que se dê àquela
função, desfilava entre as cadeiras com uma espada de metal e um enorme charuto
na boca, fazendo com a espada alguma coisa como se benzesse os participantes.
Seu ato consistia em colocar sobre o ombro da pessoa a espada e num dialeto
afro (possivelmente), proceder a alguma coisa como uma oração. Passou por todos
nós que, respeitosamente, recebemos aquela saudação, até chegar a Maria
Goretti. Quando o senhor da espada se aproximou, ela começou a tremer, sacudir
fortemente os ombros, virar os olhos e jogar fortemente a cabeça para trás
falando numa língua desconhecida, algo que não entendíamos. Levantou-se,
arqueou os ombros e se deixou conduzir pelo pai-de-santo até o altar. Aquela
atitude do curandeiro fez com que os tocadores de atabaque aumentassem a
intensidade de suas percussões, provocando também em nossa amiga, o aumento da
velocidade em uma estranha dança, à base de rodopios e gritos apavorantes. Em
seguida, outros participantes do ritual chamados pelo pai-de-santo começaram a
fazer uma espécie de passe coletivo em Maria Goretti, oferecendo-lhe também
alguns goles de cachaça, além de ofertar-lhe um charuto que ela imediatamente
começou a fumar.
Aquilo tudo me apavorou fazendo-me sentir responsável
por não ter conseguido proteger Maria Goretti e evitar que tudo aquilo
acontecesse. Vê-la beber e fumar me assustou porque eu sabia que ela não tinha
vícios. E ela demorou a se acalmar. Quando começou a diminuir a intensidade da
dança, foi sendo amparada por duas mulheres vestidas de branco e também
auxiliares ali do terreiro. Levaram-na depois para os fundos da casa, e não nos
deixaram acompanhá-la pedindo-nos que esperássemos. Um senhor de cabelos grisalhos
e de óculos disse que ficássemos tranqüilos, que breve nos deixariam vê-la.
Comecei a me sentir enjoado com aquele cheiro forte de incenso, aumentado pelo
intenso calor daquele lugar em que nos encontrávamos: um corredor estreito
entre o local do ritual e um pequeno pátio com vários cômodos de portas azuis.
Demorou uma meia hora para que, de uma daquelas
portas, saísse Maria Goretti, com aparência normal, ao lado de uma senhora
negra de óculos, cheia de colares e pano na cabeça. Ela agradeceu à mulher,
falou para nós que agora estava tudo bem, e saímos dali. No caminho ela disse
que sabia apenas que havia passado mal, sofrera um desmaio e “fora amparada por
aquela simpática senhora”. Tinha no rosto o frescor de quem tirara um cochilo
reparador, nenhum resquício de cheiro da cachaça que tomara, do charuto que
fumara e uma aparência tranqüila.
Só de nos olharmos, nós, os amigos que a havíamos
acompanhado, sabíamos que não deveríamos falar para ela o que aconteceu, e a
partir dali evitaríamos inclusive voltar a tocar no assunto.
Eu, por minha vez, nada conheço do “romani”, a língua
cigana, mas tive, naquela noite, a nítida impressão de que era nessa língua que
ela emitia os seus gritos.
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