domingo, 10 de fevereiro de 2013

30- Coisas do caminho



30- COISAS DO CAMINHO





Naquele momento de minha vida, a amizade com Chiara, mesmo sendo tão extraordinariamente diferente de tudo, já estava estabelecida. Não tinha por que temer aquela situação, embora ela fosse incomum. Até aquela fase de minha vida, nada do que me acontecera de ruim, inclusive a minha crise, esteve vinculada àquela relação; pelo contrário. Ali era um porto seguro, um momento de paz, uma experiência de segurança. Estar com Chiara era estar protegido, me sentir bem, com uma emoção gostosa e um grande prazer de viver. Cometi, é certo, pequenos vacilos - com momentos de perda dessa uniformidade - nem um pouco por culpa dela, mas por minhas próprias imperfeições, desorientações emocionais por outras causas e até mesmo pela rebeldia juvenil. Não justifica, é claro, mas é importante que o leitor entenda que vivíamos os intensos anos sessenta. Com minhas crises, eu não era, absolutamente, exceção à regra, principalmente a partir da metade daquele 1965.
Houve momentos na minha fase calma em que eu tive vontade de contar tudo para as pessoas. Vontade de dividir essas minhas inquietações nunca faltou, mas, ao mesmo tempo, na maior parte das vezes, eu sentia uma segurança tão grande estando ao lado dela que esse desejo logo se afastava.
Convenhamos: não é fácil se perceber daquela maneira, diferente de todas as pessoas. Não é fácil saber que o que acontece conosco, não se enquadra naquela categoria das coisas comuns, facilmente entendíveis pelos demais. E havia, ainda, a minha família, para quem o fato de eu guardar esse segredo representava uma espécie de traição à amizade e confiança que sempre tivemos entre nós.
Para duas pessoas de casa, muitas vezes eu me senti tentado a contar: minha mãe e Laura, minha irmã e madrinha. Estive a ponto de fazer isso várias vezes, nos momentos de inquietações mais intensas e prolongadas, mas uma força maior sempre me fez recuar. Pensando bem,... foi melhor que eu não o tivesse feito porque, com certeza, seria muito difícil elas entenderem aquela relação estranha, aquela situação além da normalidade.
Questionei Chiara muitas vezes sobre isso. Ela sempre me acalmou:
- Do jeito que somos e que estamos, não incomodamos ninguém. Pra que mexer nisso? – ela me perguntava, ao invés de me responder.
No fundo, no fundo, mesmo amando tanto aquela amiga, muitas vezes eu quis ter uma vida normal. Era pesado carregar aquela responsabilidade, embora eu até entenda que, da forma progressiva como aconteceu, eu fui, por conta disso, sendo preparado aos poucos e, portanto, não senti com a intensidade que um desavisado sentiria, aquela situação inusitada.
- Na maior parte do tempo - continuou Chiara -, eu não estou com você. Não te sufoco, não te oprimo, nem prendo os seus passos. Você tem e terá sempre sua privacidade, que é o que toda pessoa precisa em alguns momentos de sua vida. Eu não quero ser a sua sombra e estar o tempo todo com você, porque assim eu atrapalharia sua vida, entenda isso. Falo com você através de Maria Goretti, quando preciso. É importante que você entenda que o tempo para mim não é o mesmo tempo pra você, pelo menos com a dimensão que você entende. Você ainda é muito novo (*) e, mais tarde, daqui a alguns anos eu possa talvez lhe dizer, Agora, apenas aceite assim a nossa relação do modo como ela é. Eu quero só estar do seu lado e seria incapaz de expor você a algum tipo de perigo.
Eu tinha certeza daquilo. Naquele momento, mesmo sendo um adolescente, eu tinha essa certeza. Não era mais a criança dos primeiros tempos da Usina, dos primeiros encontros. Na verdade, eu sabia que, de fato, aquilo tudo era um imenso privilégio. O desenvolvimento de minha vida ia confirmar aquilo que eu pensava.
E mais ainda, o desenvolvimento de minha vida nunca me fez exigir aquela promessa não cumprida: nunca soube quem era ou foi de fato Chiara, porque ela nunca me contou. Mesmo que o amigo leitor estranhe isso e possa mesmo cobrar no desenvolvimento deste livro uma explicação mais detalhada, ele não a terá. Acho mesmo que isso, no contexto, importa pouco. Minha intenção aqui é muito mais celebrar uma amizade do que relatar fatos sobrenaturais.
(*) Para se ter uma idéia do estranhamento, em todo o livro eu digo que eu e Chiara tínhamos a mesma idade. Ela, no entanto, falava-me coisas como se fosse muito mais velha e experiente.

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