sábado, 2 de fevereiro de 2013

23- O reencontro



23- O REENCONTRO



Reencontrei Maria Goretti. Afinal, crescíamos, e, como bons adolescentes, seguíamos o velho código das relações entre meninos e meninas dessa idade: não nos falávamos, não nos cumprimentávamos e fingíamos descaradamente nunca termos nos conhecido um dia. Ter dividido a mesma carteira escolar, então, era um assunto que havia sido apagado definitivamente de nossas vidas. Na verdade, mais que as meninas, nós, os meninos, éramos terrivelmente impacientes: achávamos que elas eram um bando de chatas, histéricas e melosas. Isso foi no começo das aulas no Ginásio Nossa Senhora de Fátima.  Evitávamos, ou melhor, mais ela do que eu, passar perto um do outro para não termos de nos cumprimentar, até que um dia decidimos dar uma trégua naquela bobagem de fingir que um e outro não existiam.
        Havia, nesse tempo, é certo, situações inevitáveis, como quando René Avelar, nosso professor de francês, pediu que lêssemos juntos um pequeno diálogo contido no livro, em que uma moça comprava jornais numa banca de revistas: ela era a moça, e eu, o jornaleiro. Foi estranho, porque, não sei se por nervosismo ou cumplicidade, começamos a rir e toda a sala de aula riu conosco, inclusive René, à época, um sisudo professor. Aquilo quebrou o gelo entre nós, fez com que a gente se permitisse de vez em quando trocar uma ou outra palavra, mas foi como se não houvesse entre nós um passado ou nunca tivéssemos nos conhecido antes.
        Tive mesmo várias vezes vontade de perguntar a ela por Chiara, mas nunca tive coragem. E, na verdade, sua expressão era de que nunca havia acontecido aquele fato estranho entre nós. Parecia que aquilo havia sido definitivamente apagado da sua vida ou que ela talvez nem tivesse percebido que tudo acontecera, ao contrário da minha vida, que trazia aquela marca, aquela relação, aquele nome, como uma tatuagem inapagável.
       
Em 1961 nos mudamos, eu e minha família, para a nossa esperada casa nova, toda nossa, toda pronta, bem perto da Praça da Matriz. Estávamos felizes em nosso novo cantinho, principalmente meu pai e minha mãe, pertinho da igreja, mais perto de Deus, como minha mãe dizia. Eu tinha uma intenção: reencontrar e ficar mais perto de Chiara.
E Chiara reapareceu, se é que se pode dizer assim, através de Maria Goretti, na última semana daquele ano. Confirmava-se assim o novo modo de ela aparecer, usando (e eu não entendia como) o corpo de Maria Goretti. Esse ressurgimento aconteceu antes que começássemos, no ano seguinte, o Ginásio. Apareceu como uma prévia. Reapareceu rapidamente, apenas como se fosse para confirmar a veracidade dos sinais de meus sonhos. Reapareceu para dizer: “Estou aqui. Não me esqueça. Tenha paciência”. Sem testemunhas, como ela sempre preferiu. Tão rápido quanto daquela vez, dos nomes no caderno, no Grupo Escolar. Só que agora aquilo tudo me pareceu mais veraz. Eu tinha praticamente a certeza de que, quando recomeçássemos, teríamos um bom tempo para ficar juntos, ou, pelo menos, o que eu podia aceitar e me conformar como “estar juntos”.
Apareceu num finalzinho da tarde, quando escurecia lentamente, e o céu tinha aquela cor mágica com um resto de luz do dia: a cor dos momentos dos meus sonhos. Encontrei-a num supermercado. Fazíamos compras para nossas mães. Saímos juntos. Por coincidência. Caminhávamos quase paralelos, e não foi minha a iniciativa de puxar conversa. Eu, pra dizer a verdade, não acreditava mais que houvesse a continuidade da relação delas duas.  Ela foi a primeira a falar:
- Fiquei sabendo que vamos ser colegas de Ginásio.
- Sim, Maria Goretti -, respondi.
- Não sou Maria Goretti... agora. - ela disse, enquanto se cercava do suave perfume de gardênia.
Senti uma pontada na boca do estômago, meu coração disparou, e o perfume flutuava no ar. Assustei-me porque me desacostumara com a presença dela. Comecei a suar frio, e minha pressão baixou. Pálido, encostei-me a um poste e ela disse:
- Calma, sou sua amiga. Não quero fazer mal pra você.
Eu sabia que não. Fui pego de surpresa porque fazia tempo que aquilo não acontecia. Aos poucos fui me recuperando e sentei-me um pouco no banco da praça. Eu a olhava e via dois rostos se confundindo: o de Maria Goretti, nítido, com seus olhos brilhantes, sobrancelhas grossas, lábios e dentes bem feitos e o de Chiara, de minhas lembranças de infância, mas obscurecido por uma espécie de nuvem, sem nitidez. Lentamente aquela fusão se estabilizou, ficando o de Maria Goretti, apenas com um detalhe que depois seria reconhecidamente típico e identificador: o lábio inferior sendo levemente mordido, como um jeito próprio, charmoso, quase um sestro. Ela me olhava e parecia um pouco assustada com a reação de surpresa que eu tive.
- Calma! - ela disse novamente.
Nelmo barbeiro, um conhecido, passou, viu minha palidez e perguntou se eu precisava de ajuda. Ela, disfarçando, disse que me vira empalidecer e que estava ali também para ajudar. Fiz um sinal para Nelmo dizendo que eu estava bem e que tinha sido um mal passageiro, que ele não se preocupasse. Ficamos ali, os três, mais alguns minutos, e ela se despediu, descendo a rua pra levar as compras para sua mãe. Antes, virou-se e me sorriu. Confirmei, por intuição, que quem me sorria ainda era Chiara.
Depois daquilo, fui para casa atordoado. Naquela noite não jantei e custou-me pegar no sono na hora de dormir. Não conseguia parar de pensar no que havia acontecido.

Por volta de fevereiro começou a crescer em mim a expectativa de minha nova vida como ginasiano. Havia, mais ainda, um sinal de que Chiara poderia surgir a qualquer momento e eu dividia minhas reações: às vezes queria muito, às vezes temia. Queria, porque me lembrava de instantes bons de meus tempos de infância quando ela se encontrava comigo em minha casa; temia, porque me tornava adulto, começava a medir melhor as coisas e a raridade da situação que eu vivia, diferente da vida de todos que eu conhecia, confesso, me perturbava, me dava insegurança. De certo modo incomodava-me também que houvesse uma outra pessoa envolvida. Minha relação com Chiara mudara por causa disso. Não entendia por que deveria ser diferente do que era em meu tempo de criança. Mesmo assim, ansiei por cada minuto à frente do meu tempo, porque vencê-los significava me aproximar de novo da possibilidade de revê-la; continha-me às vezes, tentando não pensar naquilo por medo do desconhecido.

As aulas começaram na primeira semana de março, numa noite escura e cheia de ventos, depois de um temporal. Minha mãe durante o jantar, chegou a sugerir que eu ficasse em casa, mas não resisti. Peguei minha pasta e fui para o meu primeiro dia de aula.
Ainda seria necessário um mês e alguns dias para Chiara falar comigo.

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