2- As visitas da menina do espelho
Chiara (minha amiga imaginária) voltou, outros dias,
muitas vezes seguidas, sempre que eu me encontrava sozinho. Nunca achei
inusitado esse fato e me pareceu uma situação normal. Engraçado é que eu não
contei para ninguém de minha casa que ela vinha brincar comigo, e não tinha
mesmo noção de que aquilo pudesse ser certo ou errado. Mas mantive segredo
sempre. Não sei por quê, mas mantive. Talvez essa omissão de minha parte seja o
primeiro mistério dessa estranha relação.
Uma coisa a mais que posso dizer é que começou em mim,
a partir desses encontros, um novo modo de ver a vida. Pode parecer estranho
dizer que uma criança de cinco anos tenha essa capacidade. Mas garanto que a
partir daí passei a refletir sobre os meus sonhos, relacioná-los, quando esse
era o caso, com fatos da vida real e também a escolher e selecionar minhas
referências sensíveis, como me deixar envolver pelo cheiro bom de terra molhada
depois da chuva ou pela profusão de perfumes das flores de minha mãe. E, além
disso, ser capaz de medir o calor afetuoso de um abraço, entre outras coisas.
Em casa, no início de tudo, ninguém desconfiava de
nada. Não sei por que a vinda de Chiara me pareceu normal o tempo todo, muito
embora, me lembre de ter passado a pensar muito nela, várias vezes ao dia, e
começado a sonhar com ela quase todas as noites. Foi quando comecei a ter noção
dos sonhos.
Além do mais,
ela começou a aparecer para mim em vários outros lugares. Nem sempre se
comunicava comigo, mas eu podia enxergá-la. Ela de longe me sorria e eu
gostava. Passei mesmo a sentir sua falta, quando não se encontrava perto.
Tudo isso merece uma consideração: penso agora – e é
possível que o leitor também esteja aí pensando – como se ri quando as crianças
falam de seus amigos imaginários! Nunca entendi por que tanto se ri e tão pouco
caso se faz quando elas fazem referência a esses amigos. Imaginários? Até
quanto? Eu tive a minha experiência.
Se houvesse sido apenas lá, na imaturidade dos meus
cinco anos, seria possível que eu mesmo, hoje, apagasse o fato com a desculpa
de ser tudo imaginação minha, infantil. Mania que temos de tentar justificar
tudo!
A primeira fase de nossos encontros, nesse período da
infância, durou pouco menos que dois anos (de 55 a meados de 56). Minha
memória reteve, com falhas, sua lembrança física desse período. Na realidade,
acho que já adulto, acabei idealizando um rosto para aquela menina afim de uma
referência. Lembro-me do cabelo, castanho, quase louro, aneladinho, de um laço
de fita grande, um vestido listrado de azul e branco e de mangas bufantes,
meias três-quartos e sapatos pretos de verniz, com fivela dourada. Lembro-me de
olhos claros, grandes e expressivos e muita segurança de gestos para uma menina
que tinha, como eu, cinco anos. Ela, por exemplo, tinha uma letra infantil, mas
quase madura, um vocabulário ágil e uma postura que muitas das vezes lembrava
já uma moça, uma pessoa mais adulta. Lembro-me também de ela ter uma voz doce e
muito segura, e o mais importante: sempre que eu a via, surgia com ela um
delicado cheiro de flor que, mais tarde, adulto, reconheci ser o perfume de
gardênia.
Lembro-me sim, com certeza absoluta, dela comandando
as brincadeiras e me protegendo o tempo todo, quase como um anjo da guarda.
Lembro-me de me sentir muito bem ao lado dela nos primeiros tempos.
Acostumando-me e até ficando dependente de sua presença, disso tudo eu me
lembro.
E o espelho do quarto passou a ter uma função mágica.
Eu passava horas olhando para o espelho do quarto,
tentando descobrir onde poderia haver, ali, uma passagem secreta por passava a
minha amiga.
Lembro-me, a propósito, por causa disso, de ouvir
minha mãe contar, de uma antiga vizinha sua, Dona Eugênia, que quando ficava
sozinha em casa, tapava os espelhos com um pano...
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