sábado, 19 de janeiro de 2013

8- No trapézio



8- NO TRAPÉZIO



Recordo com exatidão muitas passagens de minha vida. Memória que me traz de volta a relação de amor que eu tinha com o circo, quando criança. Antes é preciso pensar que naquela época não havia muitas opções de diversão para as crianças. Era o cinema (constante), o parque de diversões e o circo, esses dois de forma esporádica.

Meu primeiro envolvimento com a magia do circo se deu através do cinema. Isso já relatei, inclusive, em um conto que uma vez escrevi. Um filme. Um filme inesquecível chamado “O maior espetáculo da terra” (The greatest show on earth), sob a direção de Cecil B. De Mille, com Charlton Heston, Betty Hutton, Cornel Wilde, Dorothy Lamour, Gloria Grahame e James Stewart. Esse filme me marcou sobremaneira. Eu me apaixonei por Betty Hutton, principalmente. Também me apaixonei pelo colorido vivo do filme.

Logo em seguida, um circo veio a Matozinhos. O “Circo Pan-Americano”, cheio de atrações “internacionais”. Luciano me levou nas quatro primeiras vezes. Foram seis espetáculos, cinco noturnos e uma matinê.

Era como estar fazendo parte de um filme. Claro que minha imaginação fantasiosa remendava os buracos da lona e embelezava a domadora de cavalos, que era muito feia. O palhaço (não lembro o nome), no meu ponto de vista, parecia o palhaço misterioso de James Stewart na fita que eu vira no Cine Municipal.

Quem me deu a primeira notícia da chegada do circo foi Laura, minha irmã, que, trabalhando no centro da cidade, viu-o chegar. Ela sabia que eu tinha gostado do filme e resolveu incentivar a minha loucura. Chegou dizendo-me que todos falavam língua estrangeira e ninguém falava português. Falou de um palhaço anão que se encantara de ver um pé de jabuticabas com as frutinhas grudadas no tronco: tudo muito plausível, para me convencer de que era verdade. A estréia seria em dois dias, numa quarta-feira. As duas noites anteriores foram de ansiedade e sono agitado. Aquela experiência me reservaria surpresas.

A primeira delas, para meu encantamento: Michelle Morgan, uma encantadora equilibrista do arame, era parecidíssima com Chiara, porém loura. Eu tive a impressão de que ela me olhava enquanto se apresentava na corda bamba.

Seu pai, Mr. Morgan, era o mágico do circo. Na aparência era igual ao Mandrake, um dos meus heróis dos quadrinhos. Mágico como ele, vestia-se formalmente de smoking e calça preta, cartola e uma capa preta de forro vermelho. No rosto magro, um bigode fino. Acompanhava-o um auxiliar. Um negro alto e forte chamado Nabul. Parecia-se com Lothar, o ajudante de Mandrake. Inclusive, vestia-se igual.

Michelle, sua filha, era a partner do número da “caixa serrada”. Senti um aperto no coração ao ver aquela menina encantadora serrada ao meio, pelo próprio pai. Eu não acreditava que alguém pudesse ser tão parecida com Chiara. Fiquei embasbacado.

Ela, quando não participava dos números, ajudava rodando a corda para a mulher que era girada pelos cabelos, ou alcançando os malabares para a dupla de argentinos, Los Heredias.

Ela participava ativamente do número do trapézio, junto com Los hermanos González, três mexicanos. Ela era linda!

E havia ainda as participações curiosas: o circo tinha uma mulher lutadora, Rita Trator, que desafiava qualquer homem da cidade para enfrentá-la num ringue de luta livre. Esse seria o grande número da sessão de sábado, véspera do último dia. Durante as sessões dos dias anteriores, Pablo Naddeo, o apresentador, provocava os matozinhenses, perguntando quem enfrentaria Rita. Nosso herói, o legítimo representante da raça masculina matozinhense, foi Maurício Rajado, um cara forte e bom de briga, popular na cidade. Muitas apostas foram feitas, decretando antecipadamente que Maurício acabaria com a mulher lutadora. O circo lotou naquela noite.

O que se viu foi algo difícil de entender: Maurício parecia ter medo de tocar na mulher, e aquele tipo de luta exigia um confronto corpo-a-corpo tipo agarra-agarra. Ela não tinha esses pudores. Logo no primeiro round aplicou-lhe uma tesoura voadora que o deixou grogue. Torcíamos tentando incentivá-lo, mas ele parecia evitar o confronto. Uma coisa tem que ser dita: ela era uma mulher muito forte. Muito forte e muito feia. Extremamente musculosa, usava um maiô de pele de onça e dois braceletes de couro, um em cada pulso. No corpo (pernas e braços) passara um óleo, o que talvez fosse o motivo de Maurício não conseguir agarrá-la. Ela deslizava, literalmente escorregava. Já sentíamos a derrota vergonhosa, quando Maurício, irritado, acertou-lhe um soco que a jogou nas cordas. O “juiz” ameaçou desclassificar nosso representante. Ele pediu desculpas, e ela, muito forte, disse que ia continuar. O resto do combate foi de respeito mútuo, muito embora continuássemos a incentivar Mauricio a partir para cima e decidir a peleja. Acabou num empate, para tristeza nossa e vergonha dos homens de Matozinhos.

Naquele domingo, na matinê, pela primeira vez fui sozinho da Usina até o centro da cidade. Minha mãe confiou, e eu acreditei que conseguiria. Não perderia aquela sessão da matinê. Sentei na primeira fila das arquibancadas para ver Michelle bem de perto.

Quando acabou a matinê, eram cinco, cinco e pouco da tarde. No mês de julho escurecia cedo. Voltei pra casa a pé, com medo, mas voltei. Mais medo ainda eu tive de que escurecesse logo. Queria chegar rápido em casa. Cheguei às seis e alguma coisa. Lucio e Luciano me esperavam.

- Quer ir de novo? – perguntou Lúcio.

- Quero. - respondi.

Minha mãe me mandou tomar banho e jantar. Não podia me segurar. Era o último espetáculo.

A melhor apresentação dessa noite foi Los González no trapézio, com Michelle Morgan. Lembrei-me de Betty Hutton e Cornel Wilde.



À noite, em casa, sonhei. Eu no trapézio como aparador de Michelle. Como no espetáculo do circo, distribuíram velas para a platéia. As luzes se apagaram, e as velas foram acesas. Faríamos o número à luz das velas.

Rufaram os tambores. Do meu trapézio joguei o trapézio de condução para Michelle. Em baixo de nós só as luzes das pequenas chamas. Agarrei-me em meu trapézio e me joguei no ar. Pendurei-me pelas pernas e a esperaria com os meus braços fortes. Eu a pegaria depois do salto mortal. Eu balançava esperando-a quando senti o seu movimento, o vôo na minha direção. Os tambores rufaram mais ainda. Um suspiro coletivo de medo irrompeu na platéia. Ela girou na minha frente, dois saltos mortais. Agarrei os seus pulsos no terceiro movimento. Assustei-me. Não era Michelle, era Chiara. Balançávamos, e a banda do circo tocava “Danúbio Azul”. Em baixo de nós as luzes das velas foram ficando menores, cada vez menores e parecendo mais longe.

- Solta...voa comigo. - Chiara pediu-me sorrindo.

Soltei-me do trapézio e maravilhosamente comecei a flutuar no ar. Eu voava e a tinha do meu lado. Abracei-a para voarmos juntos. Batíamos os pés como nadadores e voávamos mais rápido. Voamos para longe e entramos em um espelho gigante.

Na hora de pousar, nós o fizemos suavemente, descendo abraçados no meio do jardim em forma de labirinto...

Um comentário:

  1. Geraldo...não consigo lembrar o exato momento que perdi o meu afeto pelo mundo do Circo, embora o encantamento tenha ficado em algum lugar do passado, essas pequenas lembranças são muito boas, curti a leitura, me ajudou a refletir sobre essa época que me deixava levar pela fantasia do espetáculo!

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