54- O FINAL
Estava escrito. Nada podia ser feito...
S...
foi, com certeza, a última participação de Chiara em minha vida. Surpreendente,
porque eu pensava que o ciclo se encerrara, quando eu tomei o ônibus na
rodoviária de Beagá, a caminho do Sul.
Foi no finalzinho de julho, no ano de
1978, um domingo, depois do almoço. Sai sozinho para almoçar fora, porque me
deu preguiça de fazer alguma coisa em casa. Fui ao restaurante da Pescal, um
dos melhores da cidade à época. Encontrei, naquela manhã, Sérgio e Viviane, um
casal amigo que me convidou a sentar com eles. Agradeci e recusei, porque
matutava com uma coisa que eu não sabia exatamente o que era. Havia sonhado de
forma intermitente com Chiara... seis meses depois. Alguma coisa me fazia
pensar muito nela, aquela manhã. Preferi ficar sozinho. Pedi, inclusive, ao
garçom que não se apressasse; que me trouxesse antes um drinque. Precisava por
os pensamentos em ordem.
Morava, nessa época, no meu primeiro
apartamento em Rio Grande: na rua General Vitorino, 562, um prédio pequeno de
dois andares. Eu morava no segundo, e uma escada lateral dava acesso à minha
casa, escada que era isolada por uma porta no nível da rua.
Quando eu cheguei do almoço e
destranquei a porta, vi o bilhete no chão. Pensei inicialmente em Dinei e Neiva
ou em Renato e Maria José, casais amigos. Ou então em Veroci, Helena ou Ieda,
que também conviviam comigo. Não era nenhum deles.
“Estou em Rio Grande, no Hotel Charrua.
Vim ver você. Procure-me. Assinado: S....”
S... era uma boa amiga de Minas, com
quem, circunstancialmente, eu havia tido um pequeno caso muito agradável, um
pouco antes do meu namoro com a I... . Conheci-a como amiga de Cristiane, uma
pessoa para quem eu havia dado aulas particulares de desenho em 1977. Ela havia
sido modelo em nossas aulas, ficamos amigos, resolvemos sair juntos um dia, e
foi muito legal. Éramos maduros e ficamos naquela noite e em outras, sem
compromissos maiores. Gostávamos da companhia um do outro. Eu nunca havia
pensado que ela pudesse vir me ver.
Não quero com isso dizer que fosse raro
eu receber visitas de pessoas de Minas aqui no Sul. Em seis meses, eu já
recebera a visita de Lúcio, meu mano, e de Sandra Cristina e Jim, seu namorado
americano. Não pensava, no entanto, em uma visita amorosa desde que terminara com I e a visse voltar, numa manhã chuvosa, para Minas. Eu ainda não pensava
em ter alguém aqui em Rio Grande. Literalmente, eu estava dando um tempo.
Contudo, atravessando esse período carente, eu gostei de que ela tivesse vindo.
Busquei-a no hotel. Pegamos suas malas,
e ela foi se hospedar em minha casa. Criou-se o clima: o vinho
daquela tarde, a lareira acesa por causa do frio, Piazzola na vitrola... Ela
ficou em minha casa por sete dias. Ela cuidou de minha casa, esperou-me
carinhosamente com almoços prontos, lavou meus cabelos no banho... Mas eu não queria aquilo. O tempo que eu precisava
ter dado em minha vida, havia sido interrompido com aquela visita. Sensível,
ela entendeu. Uma manhã deu-me um beijo, deixou um bilhete e voltou para Minas.
Eu precisava tirar a dúvida. Senti que
aquela coisa toda podia ter a mão de Chiara. Liguei para Maria Goretti, um dia
depois de S... ter ido embora.
Eu não sabia como é que se falava com
Chiara pelo telefone. Até então nossos encontros haviam sido feitos de forma
presencial. Eu não tinha certeza se conseguiria.
Do outro lado da linha, Maria Goretti
atendeu. Quando eu disse que era eu, imediatamente Chiara assumiu a
interlocução. Não precisei vê-la, não precisei de sentir o perfume; era ela, eu
tinha certeza.
- Alô, amigo querido...
Mesmo eu tendo ligado com esse
objetivo, eu não estava preparado, eu acho, para o caso de ser ela quem
realmente me atendesse.
- Oi. Tudo bem com você?- respondi
emocionado.
-
Vou ser rápida..., os pais de Maria Goretti estão dormindo e podem acordar. Sei
que você está ligando por causa de S.... Eu a mandei... sem que ela soubesse, é
claro. Senti que você estava muito só e sabia que se deprimiria se eu não fizesse
alguma coisa. Foi para o seu bem.
Fiquei mudo do outro lado da linha. Não
sabia o que dizer. Ela tomou novamente a palavra.
- Mais uma vez, eu vou me despedir de
você. Agora será definitivo. Breve você vai encontrar o amor de sua vida e terá
a sua família. Sei agora que você estará preparado. Te amo muito... vou
desligar.
Do outro lado, o telefone emudeceu.
Fiquei ainda uns cinco minutos na cabine da telefônica. Pelo vidro do prédio, a
garoa incessante e o vento forte demarcavam o meu primeiro inverno
rio-grandino. Sai dali e atravessei a Praça Tamandaré entre bêbados e
prostitutas. Era meia-noite. Aquela lugar era perigoso.
Em casa, acendi a lareira, abri uma garrafa de vinho e
pus Misty para tocar. Fiquei ali, à beira do fogo. Arrastei um cobertor, tirei
os sapatos e dormi como eu estava: de roupas. Sonhei com o jardim de
labirintos. Pela primeira vez, iluminado por um sol matutino com um céu de azul
intenso e sem nuvens. Misty tocava no meu sonho como se fosse uma trilha sonora
trazida pelo vento. Chiara não veio se encontrar comigo dessa vez. Mas era como
se ela estivesse em toda parte, nas plantas, no céu, nos ares, na borboleta
dourada que em câmara lenta passou frente aos meus olhos, pousou em uma flor e
depois, em um volteio gracioso, tomou o rumo do azul, sumindo como uma poeira
luminosa no infinito.
FIM