quinta-feira, 19 de abril de 2012

BB - continuação...

Continuo aqui a narrativa do encontro com Brigitte. Opto pela impessoalidade do texto e não faço mais o relato em primeira pessoa. Fica mais literário, penso eu.

......................................................................................

Brigitte Bardot vir da França, desembarcar secretamente no Brasil, e mais que isso, voltar à Matozinhos para procurar um rapazinho de 17 anos, é uma coisa que ganharia, caso ele contasse, qualquer concurso de megalomania. Mas aconteceu... conto por ele

No dia dezenove de outubro de 1967, uma quinta-feira de chuva, mais ou menos uma da tarde, um táxi de Belo Horizonte buzinou na porta da casa do garoto. Ele atendeu, e lá estava no banco de trás do Opala branco, BB. Ela apenas lhe fez um sinal com a mão dizendo “Vem!”. Ele gritou para a mãe que precisava sair, bateu a porta e entrou no táxi. Ela, linda, deu-lhe dois beijos. Disse em português com sotaque “Bom te ver.” e falou para o motorista: “Hotel Jofeir”. Sorriu. Piscou-lhe o olho e disse: “J’ai appris.” [Aprendi.].

Foram de mãos dadas até o hotel. Mais uma vez, por causa da chuva, ninguém na rua, ninguém que pudesse reconhecer BB e ver que ela estava com ele. Chegando, ela se registrou com o nome de Camille, como da outra vez. Por coincidência, o mesmo quarto, 307.

Pediu, com muito charme:- Je voudrais de nouveau cette boisson de la première fois. [Quero de novo, aquela bebida da primeira vez.].

Ele já tinha dezessete anos. Nas circunstâncias interioranas, pode-se dizer, maior de idade. Pediu então, para ela, o licor de Pequi e, para ele, um uísque puro, sem gelo. Ela ofereceu-lhe um “Gauloise”, e ele agradeceu. Fumaria um dos seus: um Hollywood com filtro. Já fumava.

O francês dele, três anos depois, já era um pouco melhor. Precoce, já havia lido : “Albertine Disparue”, e “A Fugitiva” de Proust; lera também “Sociologie des Révolutions” de Arman Decoufle e algumas páginas - a introdução historiográfica -, de “La Révolution et l’Empire”, de Louis Villat.

Contudo, estava um pouco tímido. Ela deve ter notado por que ele bebeu quase todo o uísque num só gole e acendeu um cigarro sem ter apagado o primeiro. Ela sorriu, disse que tinha calor, pediu que ele esperasse, ia tomar um banho.

Dessa vez ela não deixou a porta aberta. Ele acendeu um novo cigarro porque naquela época as pessoas fumavam sem culpa. Olhou o céu negro da tarde de chuva. Trovejava. Sentiu um calafrio. Ligou o rádio... extremamente barulhento por causa do tempo carregado. Procurou uma estação que tocasse música e parou numa quando ouviu Chet Baker iniciando “Blame it on My Out”. O som metálico do pistom melancólico de Chet ocupou o quarto do hotel. Do chuveiro ela gritou:

- Que c’est beau!” [Que lindo!].

De repente, no embalo de Chet, ela pediu lá do boxe:

- Aporte-moi ma liqueur? [Me trás meu licor?]

.................................................................

Acordaram às sete da noite, com um estrondo de trovão. Ela passou o braço em volta dele e tremeu.

- J’ai peur des tempêtes... - ela disse - depuis que je suis petite. [Tenho medo de tempestades...] – [desde pequena.].

Abraçou-a... Ela chorava, parecia tão desprotegida que ele abraçou-a mais forte.

...........................................................................

Naquela noite, Melville não a procurou. Haviam brigado, ela disse. Na última vez em que esteve em Matozinhos. Desta vez, viera por causa dele, do menino! No entanto, não se demoraria muito. Voltaria na noite seguinte para Paris. Acertava detalhes para filmar “Shalako” com Sean Connery, um de seus raros filmes em língua inglesa.

O menino conseguiu que ela compreendesse que havia saído de casa, praticamente sem avisar a mãe. Já eram quase oito horas, ela poderia estar preocupada, e ele precisava dar notícias. Faria o possível para voltar. Ela o fez prometer que voltaria para dormir com ela.

Quando deixou o hotel, a chuva havia passado. As luzes no asfalto molhado davam a Matozinhos uma aparência de “film noir”. Ligou para o ponto de táxi e um deles foi buscá-lo. Em casa, falou para a mãe que estava estudando com Juracy. Não iria à aula naquela noite, porque havia optado por estudar mais para uma prova horrorosa do dia seguinte e dormiria na casa de Aluízio. Estudariam até a hora que agüentassem. Não se preocupasse, não viria dormir em casa. Em sua casa não havia telefone. Não havia como ser confirmado. Mentiu para a mãe.

Quando voltou, Brigitte o recebeu à porta com um beijo ardoroso, pedindo:

- Vous m’emmenez à dîner? [Me leva pra jantar?].

Pensou: “Puxa vida, Matozinhos não oferece muitas alternativas”. Se ele a levasse ao Ranchão, um posto de beira de estrada, teriam uma comida excelente, mas umas cinqüenta pessoas que a reconheceriam. Ao “Cachorro Quente”, no centro da cidade, também seria impossível. Imaginou-se entrando ali e passando por uma mesa em que estivesse Gabriel Cotta, Seu Cruz, Paulinho Maciel, Coador, Fio de Colô, seu primo Nôca e outros habitués, todas as noites, da mesma mesa. Não quis dar essa colher de chá, para eles.

Levou-a ao Bar do Miguelito, pouco freqüentado e pertinho do Jofeir.

Comeram quibe cru, beberam uma garrafa de vinho e conversamos até uma da manhã. Voltaram a pé, abraçados, brincando nas poças d’água e cantando “Dominique”, ele em português, ela em francês. No hotel, antes dos cigarros, ele deixou-se cavalgar. Ela chamou-o de “meu amor”... em português.

Para o dia seguinte, de manhã, combinou de levá-la até Belo Horizonte e depois ao aeroporto. Seu vôo sairia para o Rio às dezenove e depois o de Paris seria às onze e meia da noite. Teria quase todo o dia para ficar com ela.

Acordaram cedo e pediram o café no quarto. Depois do café, ela colocou a bandeja do lado da cama e puxou-o para si. Ele beijou seus olhos e deixou que ela o conduzisse. Depois, suados e felizes tomaram juntos, uma nova ducha.

Fecharam a conta no hotel e, por segurança, ele pediu que viesse buscá-los, um táxi de Pedro Leopoldo.

Em Belo Horizonte levou-a à Pampulha, mostrou a igrejinha de Niemeyer, a “casa do baile”, as obras do Museu de Arte Moderna, e andaram de pedalinho na lagoa. Almoçaram na Cantina do Lucas, no centro e ela pediu guaraná, dizendo que adorava. Ali, ela foi reconhecida por Seu Olímpio, o garçom. Em troca de um autógrafo e de uma foto, ele prometeu discrição.

Depois, sentaram-se para conversar um pouco no Parque Municipal. Ela, sempre disfarçada com óculos enormes e um lenço nos cabelos. Às três da tarde, entraram no Cine Art-Palácio, quase vazio, para ver “The naked edge”, com Gary Cooper e Deborah Kerr. Quando se sentaram ela o abraçou, tomou-lhe uma das mãos e colocou-a entre suas pernas. Comentaram sobre a noite passada quando ela disse da vontade de abandonar tudo e ficar com ele em Matozinhos. Era impossível, sabiam. Ela lhe disse então, que detestava ser tão velha. Já pensava até, adiantou-lhe, encerrar a carreira, comprar uma ilha na Sardenha e encher de bichos, para proteger os abandonados.

Conversaram muito. O menino teve vontade de ser mais velho, dez, doze anos, para ir embora com ela.

Ela prometeu sempre se lembrar-se dele e disse que nunca esqueceria Matozinhos.

Às sete em ponto, o avião da Cruzeiro levantou vôo da Pampulha, levando Brigitte e deixando o coração do menino apertado.

...................................................................................

Uns dias depois, ele recebeu uma carta de Brigitte. Ela assinava Camille, seu nome verdadeiro, falava de saudades e um pouco de sua vida...

domingo, 1 de abril de 2012

BB

Quem leu o meu perfil viu que tenho um romance guardado, chamado "Chiara", que optei por não publicar, mesmo depois de ter o aval e o aceite da editora. Apesar de muita gente que leu ter me dito que era bom achei que ainda não era hora e nem "este" romance, que deveria ser o meu primeiro. No entanto, existem passagens no texto com uma independência tão grande que pretendo ajustá-las e transformá-las em contos. O texto que publico hoje está nessa categoria.

.....................................................................................

Volto, agora, a 1964, para falar de Brigitte Bardot. Antes quero pedir ao meu leitor que não me exija linearidade no que conto neste livro. O tempo cronológico às vezes trava o ritmo da explanação, e o que é emotivo e interessante acaba se perdendo na frieza do texto calculado. Por isso, embora eu já tenha narrado fatos de 1965, não me constrange retroceder no tempo para contar o que houve entre eu e BB. Não quis misturar esse assunto com os anteriores, para não perder o fio de minha explanação, afinal eu falava da efetivação de minha amizade com Chiara.

Sobre Brigitte, de quem eu já havia falado no preâmbulo, conto agora os momentos de nosso primeiro encontro. Conto o que só eu, Chiara e o Monsieur Melville sabíamos. Ela, porque sabia de tudo; ele, porque tinha sido amante de Brigitte; eu, por saber um pouco de francês. Vou tentar - apesar de saber que é difícil - convencê-los do que foi a mais pura verdade.

Conto inicialmente como foi a primeira vez. A segunda, conto depois.

No mês de abril daquele ano, entre o golpe militar e meu aniversário, uma mulher altiva chegou a Matozinhos num táxi de Belo Horizonte. Naquela hora eu estava na praça e vi o táxi parar no ponto ao lado do táxi de Afrânio (um taxista de minha cidade), e o motorista pedindo informações. Vi uma mulher alta, esplendorosamente bonita e imponente, abrir a porta e ficar em pé, do lado do carro, abanando ansiosamente um leque. Ali, juntaram-se alguns motoristas do ponto e parecia haver um problema de comunicação. Ela, pisando duro, começou a andar de um lado para outro.

- A única coisa que entendi essa gringa dizer, foi “Matozinhôs”, e eu concluí que fosse Matozinhos. Não sei aonde de fato, ela quer ir... – disse o taxista de Belo Horizonte.

De repente, Lió, outro motorista do ponto, vendo-me por perto, disse:

- Olha aí, esse menino irmão de Christiano talvez entenda essa língua.

Senti-me poderoso! Dirigi-me à mulher. Foi um susto! Ali na minha frente, eu reconheci BB, Brigitte Bardot. A mulher que me encantara quando eu assistira ao filme “E Deus, criou a mulher”, filme proibido para dezoito anos, mas que em Matozinhos, eu havia assistido com treze, por cortesia de Romeuzinho, filho de Romeu, o dono do cinema.

Segurei a emoção, respirei fundo, cravei as unhas na palma da mão e perguntei num francês convincente:

- Je peux vous aider? - [Posso ajudar?]

Vocês não imaginam a cara da BB, tirando os óculos, fazendo uma expressão de alívio e falando: “Dieu merci!” [Graças a Deus!]

Ela me sorriu, acreditem! E, encantadoramente sedutora, abriu a porta do táxi e sussurrou um pedido, quase uma ordem, para que eu fosse com ela: “Venez avec moi?” [Você vem comigo?].

Não pude recusar, aliás não seria louco de recusar. Ela abriu a bolsa e tirou um cartão escrito “Hotel Jofer”. Concluí, por dedução, que se tratava do Hotel Jofeir, um dos dois hotéis de minha cidade. Perguntou-me se eu sabia chegar até lá. Eu disse “Oui” e recebi, em troca, um sorriso lindo.

E ela, fazendo biquinho pediu-me: “Vous m’emmenez? [Me leva?].

Difícil explicar a sensação que me passava na alma. Ninguém tinha sacado que era ela, Brigitte, que estava ali, e os minutos passavam rápido, voavam. Temia chegar ao hotel, ela me dispensar, ninguém mais tê-la reconhecido, e eu ficar com uma baita história, sem poder contar para ninguém, porque seria difícil alguém acreditar.

Quando paramos em frente ao hotel, ela pediu-me com outro biquinho:

- Vous m’aidez? Venez, je veux que vous soyez mon traducteur. [Me ajuda? Venha ser meu tradutor.]

- Évidemment-, respondi.

Ajudei-a carregando uma bolsa, ela carregava uma frasqueira, e o boy do hotel, três malas. Vi-a preenchendo a ficha, escrever Camille Javal e me sorrir como se eu fosse seu cúmplice. Ela me sussurrou baixinho:

- Je m’aperçois que vous savez qui je suis. [Percebi que você sabe quem eu sou.].

- Vous êtez inoubliable. [Você é inconfundível.] - respondi.

- Je pourrais avoir besoin de demander quelque chose et j’aimerais pouvoir compter sur vous. [Posso precisar pedir alguma coisa e preciso de sua ajuda.] - ela me pediu mais uma vez. E eu subi com ela ao apartamento 307.

Preciso dizer, no entanto, que meu repertório de francês é bem pequeno. Consigo ler quase tudo, entendo razoavelmente, mas tenho medo de falar e pavor de escrever. Mas, como viram, estava até ali, me quebrando o maior galho. Até quando ela me pediu sussurrante:“Je voudrais boire quelque chose de fort et sucré.” [Quero beber alguma coisa. Alguma coisa forte e doce.]- quase uma ordem.

Desci ao bar atrás de uma bebida para Brigitte.

Pelas limitações naturais da copa de um hotel matozinhense, só havia, nos moldes que ela queria, Cinzano e Licor de Pequi. Na dúvida, levei as duas garrafas e um guaraná.

- Entrez. - ela gritou, quando, educado, bati, no meu retorno. .

Como eu disse, era abril, e muito calor. Uma tarde mormacenta! Ela colocara-se à vontade. Estava vestida apenas com uma camisa masculina, um número três vezes maior que ela, soltara os cabelos, calçava umas pantufinhas de seda e trazia nos dedos um “Gauloises” com piteira. Pediu que eu sentasse ali perto dela e a servisse uma dose. Ninguém consegue imaginar a expressão de prazer que vi no rosto de BB enquanto ela experimentava o licor de pequi.

- Délicieux – ela disse.

Pediu-me que explicasse o que era, e aí, caros leitores, por mais que eu me esforçasse, faltou francês.

Abri o guaraná, botei duas pedras de gelo e girei as pedras no copo com os dedos, como uma vez eu vi Robert Preston fazer no filme “Junior Bonner”.

- C’est charmant! – [Que charmoso!] - Ela disse com um sorriso lindo.

Contou-me, então, chegando bem pertinho de mim, que já estava no Brasil desde o fim de março, em Cabo Frio, com Bob Zaguri, um amigo seu brasileiro e que agora era seu namorado. Viera à Matozinhos fugindo de Zaguri, porque descobrira que encontraria na cidade, Jean- Claude Melville, uma antiga paixão sua de Paris. Eu conhecia o Monsieur Melville, como toda Matozinhos conhecia, e custava-me acreditar que aquele francês gordo da fábrica de cimento, com aparência de sujo, óculos de fundo de garrafa, dentes amarelos de nicotina e nariz grande e vermelho, pudesse ser a paixão de BB. Mas era ele mesmo. Ela tirou da frasqueira uma foto em que os dois abraçados seguravam esquis em um fundo de neve.

- J’ai menti à Bob en lui disant qu’il était mon oncle. [Menti para o Bob, dizendo que era meu tio.]- sorriu.

Fiquei ali com ela conversando das três da tarde até as quatro e meia. Ela pediu que eu falasse da cachaça, de João Gilberto e de Dom Hélder Câmara, três assuntos bem distantes um do outro, mas sempre temas para estrangeiros. Eu, graças a Deus, sempre fui bem informado e pude atendê-la. O sorriso lindo que ela me deu provou isso. Deu-me um beijo no rosto, deixou um pouco de batom e limpou com a beirada da camisa. Disse-me então que tomaria um banho, pediu que eu ligasse o rádio e escolhesse uma música. Incrível! Ela tomou banho de porta aberta! A cortina de plástico do boxe do banheiro era supertransparente. Como ela tomou banho frio, não houve vapor para embaçar o plástico. Uma loucura!

Depois ela saiu enrolada em uma toalha, pediu que eu acendesse para ela um novo cigarro (nessa época eu ainda não fumava) e engasguei com o Gaulloise, um cigarro muito forte.

Ela me olhava com seus grandes olhos enquanto eu tossia e tentava disfarçar como se aquilo não tivesse me abalado. Pensei comigo: “agora ela tira a toalha, agora ela tira a toalha...”. Mas não tirou. Deus não quis – pensei. Ela então, pediu-me licença, disse que ia dormir meia-hora e esperar Melville às oito como combinaram. Deu-me outro beijo no rosto, não limpou com a camisa e disse que iria embora no dia seguinte. Pediu que eu escrevesse meu nome e meu endereço em um papel e falou que voltaria a Matozinhos para me procurar.

Eu esperaria, é claro... e posso adiantar a todos: ela voltou.