segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Histórias da praia




               

                HISTÓRIAS DA PRAIA




SOLANGE ALVES BIERKINSKY

            Solteira, quarenta e três anos, curitibana, escriturária, salário de mil e seiscentos reais, econômica, férias de quinze dias na praia, na casa alugada pelo irmão: com este, a cunhada, quatro sobrinhos e nenhuma outra amiga para trocar inquietudes e impressões. Veio, neste dia para a praia bem cedo para fazer a manutenção da cor, conseguida com exposição intensiva ao sol, e apoio de um bronzeador barato. Biquíni amarelo combinando com as havaianas amarelas. Alta (1,78m), loira, celulite discreta, corpo ainda razoavelmente firme. Olhos ligeiramente verdes, escondidos por óculos de lentes grandes, muito escuras. Na cabeça, um pensamento remido num príncipe impossível, desconhecido e talvez inalcançável, posto que, nos últimos tempos, deixara de acreditar em ciganas, fotonovelas, horóscopos ou surpresas do destino. Na alma, um vazio sem ter a receita certa de como o preencher, Nos olhos, a tristeza de quem vê o mundo apenas como um imenso trem, sem paradas, devorando trilhos e indo..., indo para um infinito invisível. Irritada, em vésperas de se menstruar, com cólicas renitentes, porque essa é a sina das mulheres, e desesperançada porque não vê nenhum tempero, na vida sem sal, nos últimos dias. Está ali, incomodada pela areia fina do vento das dez, que lhe esfarinha o corpo, grudando no óleo de bronzear como se ela fosse um imenso bife à milanesa. De mal com o mundo, de mal com a vida, chupa sem prazer e alegria, um Chicabon com os lábios ardidos e branqueados com um rastrinho de Hipoglós...
            Olhando o homem mais velho que joga frescobol com uma moça bonita, pensa, inspirando o ar quente com odor de maresia:
            Que raiva, que eu não consigo tirar os olhos desse sujeito! Por que será essa atração... que eu não quero? Como eu tenho raiva que essa coisa incontrolável aconteça comigo! Como eu detesto esse tipo de homem! Olha lá, está se achando o maior gostosão da face da terra só porque está com essa meninota de corpo durinho. Será que é filha? Não, não deve ser. Não se parece com ele. Deve ser um caso. Aqui na praia, isso é comum. Coroões com meninas novas. Isso mesmo. Deve ser isso! Será que esse débil mental acredita que ela pode realmente gostar dele? Aproveitadora! Coitado! É burro, ainda por cima, como todos os homens que se acham um poço de charme, mas o charme que eles têm é na carteira recheada. É claro que essa cocotinha está de olho é na grana dele que deve ser muita. Meninazinha metida, se achando a coisa mais gostosa do mundo só porque está com tudo no lugar. Deixa estar, o tempo vai se encarregar de derrubar tudo aquilo. Ela, não deve nem fazer idéia do que seja uma vida de dureza e de trabalho. Só fica aí, no bem bom, sugando a grana do coitado. Coitado? Coitado, nada! Eu quero mais é ver esse imbecil quebrando a cara. E quero também ver esse sorriso dela se desmanchando. Bastava que ela experimentasse, um dia, um dia só, acordar cedo, pegar dois ônibus, agüentar as cantadas do seu Novak, todos os dias..., agüentar aquela pilha de serviço, aquele telefone que nunca pára de tocar e aquele salário mixuruca que eu ganho, na transportadora. Aí sim, que ela ia ver o que é bom. Olha lá a cara do outro! O sorriso! A careca! Sujeito trouxa! Será que ele acredita que alguma mulher possa gostar de um careca? Olha lá aquela barriga! Se ele continuar prendendo a respiração daquele jeito vai acabar tendo um troço! Olha o olho embevecido com que ele olha para ela. Parece que está se achando um Alain Delon! Coitado...

PAULO RICARDO ROSSI

Viúvo, quarenta e nove anos, passo-fundense, empresário, retirada média mensal de cinqüenta mil reais, férias de apenas dez dias na praia (por força dos negócios), em uma de suas muitas casas, com a irmã, o cunhado e a filha. Muitos amigos com quem trocar impressões sobre a vida e negócios. Veio para a praia, bem cedo, caminhou dez quilômetros, navegou um pouco em seu barco, telefonou duas vezes para o seu gerente, e se relaciona com o sol sem exageros e com moderação. O cabelo ligeiramente embranquecido nas têmporas denuncia maturidade e confere-lhe um charme discreto. Ágil ainda para a idade, típico de quem cultua o prazer pelos esportes. O corpo até razoável, barriga até que pequena e pouco flácida se comparado com os outros homens de sua idade na praia. O olhar expressivo e o rosto bem marcado denunciando uma história de que talvez tenha sido um rapaz muito bonito. Na cabeça a lembrança de um tempo feliz, não muito distante, em uma companheira amada tragicamente perdida. No coração, uma dor difícil de ir embora, mas conformando-se aos poucos, à medida que os papéis do calendário vão sendo trocados. Nas intenções, nenhuma pressa de esquecer, mas apenas a concordância que os dias passam lentos, como uma locomotiva vagarosa descobrindo estações e trazendo surpresas ora boas ora ruins; desconhecidas. Cabeça dividida entre o lazer e os negócios, porque essa é a sina dos homens, administrando o vazio, com sofrimento maduro, porque a vida, desde que perdera a mulher, insiste em ser sem sal e sem graça. Está ali, na areia jogando frescobol e com um olhar de paixão para a moça: sua filha, única alegria real que lhe resta.
            No voleio de uma bola, imprimindo força nos músculos para alcançá-la, vê de relance, a mulher bonita de biquíni amarelo, estirada na cadeira, como um lagarto abraçado pelo sol. Pensou, capturando um odor de flores, fugitivo talvez, de um óleo de bronzear:
            "Mulher interessante! Chama-me a atenção, mais que as outras, aqui na praia..., mesmo não sendo tão nova. Parece muito bem para a idade, Será que está sozinha? O que está acontecendo comigo? Será que devo...? Acho que devo! Preciso atender a minha filha e começar de novo a me aproximar das pessoas. Sinto falta de amizades, de sair e de me distrair depois da morte de Suzana, Sinto falta de sair com alguém... da companhia de uma mulher. Não agüento mais ficar sozinho, só trabalhando, trabalhando. Ela é bonita! Sim..., ela é bonita! Lembra até, vagamente, Marisa Berenson... Marisa Berenson loira. Tem até um certo charme... uma classe mal trabalhada...  Quicando, quicando a bolinha, perdido no tempo, pensamentos viajando, Paulo Ricardo, re-experimenta sensações. Por que tão escarrapachada...? Se não se torrasse tanto nesse sol, poderia reavivar o frescor de sua beleza. Precisa de alguém que lhe diga isso. Gostaria de poder dizer-lhe. Tem pernas bonitas, longas, como eu gosto! Conheço essa batida do meu coração...! Mãos bonitas...! São bonitas as suas mãos! Qual será a cor de seus olhos? Se ela tirasse aquele óculos...Pena as havaianas...acho tão brega...

ALINE ALBUQUERQUE ROSSI

            Solteira, vinte e dois anos, porto-alegrense, terceiranista de medicina, mesada de cinco mil reais, econômica e moderada, férias de trinta dias na praia, na sua casa, numa das muitas casas do pai, da família, apenas com o pai e dois tios, irmão e cunhada da mãe, um namorado arquiteto que só pode vir aos domingos, muitos amigos entre os jovens, com os quais troca impressões em agradáveis noites no clube e muitas manhãs e tardes na praia. Veio para a praia bem cedo porque gosta de ver o sol nascer e de andar sozinha, pisando as ondas que penteiam a areia. Estatura mediana (1,69m), cabelos curtos e castanhos, corpo cuidado de quem não se expõe ao sol sem necessidade, estilo esportivo e muito, muito charmosa. Olhos azuis realçados pela tez ligeiramente morena e o biquíni branco. Elegante até nos movimentos mais bruscos do jogo. Leveza de gestos, clareza de reações. Pés bonitos, mãos bonitas, seios firmes, pernas rígidas de quem cultua ginástica e cuidados. Nenhuma ruga, a não ser as provisórias marcas de expressão que dão personalidade ao rosto bonito e bem formado. Na cabeça, um desejo sincero de ver o pai (muito amado) feliz como antigamente. Na alma, uma saudade conformada e doce, da mãe de quem havia sido tão amiga, e a crença, de que a vida é um imenso trem, ora lento, ora veloz, que sorteia estações e deixa em cada uma delas, uma marca de surpresa: às vezes um ganho, às vezes uma perda. Cuidadosa com o pai, porque essa é a sina das filhas, triste porque não consegue ajudá-lo em sua tristeza. Está ali, tentando fazê-lo feliz, distraí-lo com o jogo, tentando abrir-lhe os olhos para a beleza do mar. No instante de um segundo, vendo o pai esticando-se para alcançar a bola, abarca a paisagem da praia ao fundo, como se congelasse uma fração do tempo. Vê os imensos costões de pedra cerzindo o mar e a mata nativa. Vê também o pai, que ama tanto, repentinamente transformado no único personagem daquele quadro da natureza, quicando a bolinha como se houvesse perdido o compromisso com o tempo.
            Constata-se feliz por estar ali com ele, e pensa suspirando lembranças como se ouvisse uma música ao longe: 
            "Que maravilha de mar! Como estou feliz que papai tenha vindo! Como é bom passar esses dias com ele, distraí-lo, ajudá-lo a superar as saudades de mamãe. Como eu o amo! Como eu o acho bonito! Como ele é bom! Como eu quero que ele possa ser feliz de novo! Como eu gostaria que ele pudesse conhecer pessoas, sair com alguém, se divertir, ter alegrias!  Quem sabe aqui na praia mesmo... conhecer alguém. Eu ficaria muito feliz e aliviada. Aquela senhora de biquíni amarelo? Quem sabe ela? Se eu não estou enganada... meu pai..., está se exibindo para ela. Será? Esqueceu até do jogo! Que "bandeira"! Vamos lá, meu velho. Devolve essa bola! Meu Deus, acho que é isso mesmo! Não é exatamente o tipo de nova mãe que eu procuro, mas não sou eu quem devo escolher. Preciso deixar de ser ciumenta. Quem sabe eu ajudo! Se eu jogar uma bola na direção dela, posso descobrir...    
                    
            O mar ondulante vai e vem, flutuando banhistas, pranchas e barcos. O sol varrendo a extensão da praia, realça o verde da água e o brilho da areia, recebendo, caloroso e aconchegante, os banhistas deitados que se revigoram. O vento, agora suave, amacia o calor, acariciando peles e cabelos. A natureza do litoral afinada e cúmplice cumpre seu papel de anfitriã dos homens, mulheres e crianças...
            Uma bola pinguepongueando no ar. Uma bola amarela premida pelo vento, direcionada por uma mão intencionada que, fingiu-se autora de um ato acidental, rompe o ar, toca numa perna e cai, escorrendo na areia, perto do guarda-sol, nos pés da mulher de biquíni amarelo.
            Um olhar (dela) irritado, confundindo-se, bloqueando-se. Um olhar (dele) desajeitado, ansioso, culposo. Uma onda de eletricidade. Ondas mal conduzidas, não sintonizadas. Um pedido de desculpas, sem resposta (pelo nervoso), a mão buscando a bola tocando, por descuido, um pedaço de perna. Um gesto, um safanão (não bruto, mas instintivo), uma voz inamistosa, ansiosa, dizendo "Faça o favor!", a outra voz, sentindo-se perdida, dizendo "Sinto muito!"
            O instante talvez errado. O momento indevido. Azares da escrita torta dissertando sobre um texto de equívocos. Sem consertos. Incompatível. Dois olhares chocando-se sem química promissora - que em outro lugar, outro momento, legaria -, desconcertando possibilidades de encontro, duas almas não se dando chance - tempo para diálogos.
            Uma mulher de biquíni amarelo, confusa, coração descompassado, desistindo da praia, sacudindo a toalha, tirando a areia dos chinelos, juntando as coisas, fechando o guarda-sol e indo embora com um passo pesado e uma nuvem nos olhos.
            Um homem se sentindo destreinado para o trato com as mulheres, se perguntando do seu erro, olho de quem parece ter sido pego cometendo um pecado e sentindo ainda, na pele do braço, um pouco do óleo da perna da mulher.
            Uma moça que só queria ajudar, tendo a sensação de que errou em seu gesto, tentando - sem conseguir - entender (como mulher) a atitude da outra. Entristecendo-se por colocar o pai na situação desagradável, perguntando-se qual teria sido a atitude certa, o porquê do insucesso, e achando tudo uma droga, porque estava se sentindo culpada.
           
            Alheios ao detalhe do desencontro, que não lhes dizia respeito e do qual nada perceberam, os outros banhistas olham um aviãozinho arrastando no céu uma faixa com propaganda de antiácido: conspurcando o azul do céu.

            Na noite que dará seqüência a este dia, provavelmente os três não terão bom sono. Solange terá sobressaltos, sentirá falta de ar e abrirá as janelas, olhando com lágrimas nos olhos e aflição no peito as estrelas no céu. Paulo Ricardo buscará - por reflexo - no travesseiro vazio, a presença da mulher que não está mais ao seu lado. Aline pensará que o sábado é urgência, ansiando por Adriano, o namorado arquiteto, pois sentirá - mais do que nunca - a carência de quem a console, lhe dê um abraço e proteção.     

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012



OS COMEDORES DE VIDRO


   
  Quantos passos tinha o seu quintal? Resolveu contar como forma de definir os limites do seu território. Da goiabeira de goiabas brancas, atrás do paiol, até a velha caixa d’água, quinze passos. Da caixa d’água até o canteiro de onze-horas da mãe, vinte e nove. Do canteiro de onze-horas até o moirão mais alto, treze. Do moirão até a guabirobeira perto do quarador, vinte e nove passos. Passos de menino. Ali era o seu mundo, seu universo de referências, palmo a palmo exaustivamente percorrido em brincadeiras, zonas de grama fofa, touceiras de capim meloso e moitas de espinho que evitava até de olhos fechados. Só ele sabia os lugares secretos, esconderijo das bolinhas de gude, o cemitério das formigas. Só ele.
      Naquele momento intrigava-o o olhar cobiçoso com que o inimigo novo da casa do lado olhava para suas terras. Chegaram no finzinho da tarde passada e a primeira coisa que fizeram foi olhar para dentro do seu quintal. Chegou a pensar no maracujazeiro entrelaçado na tela, oferecendo seus frutos para o outro lado. Era uma divisão à qual não estava acostumado. De cima do murinho da caixa d’água observou o movimento da outra tropa. Eram dois: o lourinho comprido e magro e o menor, barrigudinho e de cabelo espetado. Observava-os sem ser visto, controlando-lhes os movimentos e estudando possíveis estratégias de defesa. De onde estava, camuflado entre as tábuas, tinha uma visão geral que o privilegiaria numa guerra. A meio metro de alcance da sua mão, a mamoneira era fonte de munição certa e inacabável. Os dois bodoques de borracha de câmara de ar eram tão infalíveis que conseguiam acertar as latas de banha do lado da casa do invasor, alvo que usava quando a casa era vazia. Ali, o murinho era o posto da sentinela do “Forte”, onde tantas vezes brincara com amigos imaginários, defendendo-se dos índios, piratas e bandidos. Olhava e tinha a impressão de ser olhado. Às vezes, os dois meninos percorriam a cerca com os olhos e davam a impressão de se deter na caixa d’água. Por via das dúvidas, resolveu que aquela noite levaria para o quarto seu baú do tesouro: a caixa redonda de chapéu “Ramenzoni” que continha vinte e sete bolinhas, inclusive a esfera de aço que guardava para as horas fatais do jogo, o esqueleto quase inteiro de um rato e o vidro de álcool com o escorpião negro dentro. Seria, talvez, o seu tesouro que o inimigo ambicionasse tanto? Pensou naquele momento de meditação que seria bom outros meninos para brincar, uma vez que era muito sozinho. Sua irmã pequena não falava, não tinha dentes e só tomava mamadeira. Poderia até ser possível um trato de paz, poderia surgir quem sabe no futuro um acordo, mas por enquanto o desconhecido não mereceria diálogos, pelo menos até que provasse boas intenções. Inquietava-o que eles não se afastassem da cerca e insistissem em inspecionar seu quintal. De vez em quando os meninos chegavam perto da caixa d'água. Rastejavam por trás das mamoneiras e dava para ver as testas suadas, de tão perto que chegavam. Mamoneiras, pensou. Eles também tinham muita munição. Teriam bodoques?
      O grito da mãe chamando para o almoço interrompeu sua observação. Quase ao mesmo tempo a mãe dos meninos também os chamou. Guerreiros também têm fome, pensou. Enquanto descia da caixa d'água, viu seu pai chegando com o homem da casa do lado: o pai dos meninos. A bicicleta dele, uma "Göricke" verde e novinha, era mais bonita que a deu seu pai. Chegavam juntos para o almoço. O outro homem, louro como um alemão, mais alto e mais forte do que o seu pai. Já eram amigos. Pensou em como as pessoas grandes ficam amigas com rapidez.
      A angústia da observação o inquietara. Estava nervoso. Comeu surpreendentemente rápido o arroz com vagem e guisadinho de que gostava tanto. Recusou, para surpresa da mãe, o pudim de claras, seu preferido. Enquanto comia, não tirava os olhos da janela. Talvez os meninos fizessem o mesmo. Conseguiu ouvir o pai falar do novo vizinho, que ele também viera para trabalhar na fábrica e era tratorista. Breno, o nome. Conseguiu ouvir a mãe dizer que ainda não tivera tempo de fazer amizade, que a qualquer hora faria uma visita, afinal só chegaram ontem.
      Voltou para o pátio ouvindo a mãe dizer: "Menino, não vai brincar no sol depois do almoço. Faz mal". Prometeu ficar na sombra.
      Subiu na caixa d'água. Os meninos já estavam lá, olhando de novo, sentados no banquinho do abacateiro. Na sombra. Não haveria combates ao sol.
      Quando o sol diminuiu, achou que já era de se impor, mostrar que não tinha medo, mostrar que aquela terra tinha dono. Botou um punhado de mamonas no bolso, pendurou o estilingue no pescoço e pulou lá de cima até o chão. Mostrou coragem. Caminhou até aquela que seria uma linha imaginária que separava os dois quintais: o pequeno pedaço sem cerca, do lado da tela com o maracujazeiro. Precisava mostrar o limite. Mijou, caminhando mais ou menos dois metros, fazendo com o mijo a linha divisória. Mesmo que o sol viesse a secar a linha, o que importava era que tinham visto. O mijo foi tanto porque ficara toda a manhã sem mijar. Impôs respeito. O menor, barrigudinho e de cabelo espetado olhou-o com expressão de espanto. O maior riu um riso nervoso, se encolhendo e parecendo ter vergonha.
      O que importou é que houve por parte dos outros o entendimento imediato. Como entre os bichos, aquele era um código universalmente conhecido como delimitador de linhas. Todas as crianças entendiam. Entendiam também que tudo passasse daquela linha, de um lado ou do outro, passaria a pertencer ao dono do espaço invadido. Naquele instante o gato malhado atravessou a linha perseguindo uma borboleta. Bicho vivo não vale, concordaram telepaticamente.
      A tarde passou, as duas mães chamaram para o banho e para a janta. A noite seria a trégua da batalha.
      O dia seguinte foi o dia de exibir brinquedos. Levou consigo até a fronteira: o trator vermelho, os soldadinhos de chumbo e o carrinho de rolimã. Os outros trouxeram: o velocípede verde e os cubinhos de montar (do menor), uma carretilha de empinar papagaio, um jipe do tamanho de uma caixa de sapatos e uma bola G18, número 5 (do maior). A bola, linda, novinha e com os gomos alaranjados lustrosos! Teve inveja. Brincou sozinho com os amigos imaginários, fazendo com a boca o som do trator, brincou com os soldadinhos imitando os sons da batalha e lustrou as rodas do carrinho com uma flanela. Os outros atolaram e desatolaram o jipe, chutaram muita bola contra o muro e fizeram vários "oitos" com o velocípede, exibindo habilidades. Durou todo o dia a exibição dos brinquedos. Só pararam para o almoço e depois à tardinha, hora de se lavar e da janta.
      O dia seguinte trouxe uma surpresa. Cedo, bem cedo, parou na porta da casa dos meninos uma caminhonete de loja trazendo uma caixa grande. Houve uma certa alegria do outro lado e nenhum dos meninos veio no quintal. O que seria aquilo? Ficou ansioso para saber o que se passava. No almoço ouviu a mãe falar com o pai: a vizinha ganhou uma geladeira. Ouviu o pai falar com a mãe: bobagens! Modernidades! Não sabia o que era uma geladeira.
      Depois do almoço viu a mãe conversando com a vizinha perto do quarador, as duas se apresentando, a vizinha falando da geladeira, convidando a mãe para conhecer, a mãe mandando-o cuidar da irmã; iria rápido à casa da vizinha e já voltava. Ele queria ir junto, matar a curiosidade, mas, sabia, não adiantava teimar com a mãe.
      No meio da tarde a mãe levou para a vizinha um cesto de ovos. No fim da tarde, o susto: os meninos comiam vidro debaixo do abacateiro! Chupavam, lambiam e mordiam os cubinhos de vidro. Nunca vira aquilo! Os meninos de lá continuavam chupando, lambendo e mordendo vidro, olhando para ele como se exibissem uma faculdade que ele não tinha. Correu a contar para mãe, assustado.
 
      “Seu bobo, aquilo é gelo", explicou ela, rindo muito e alisando-lhe os cabelos. Gostava muito quando a mãe lhe alisava os cabelos. Ela o pegou no colo e disse o que era geladeira, para que servia, e que talvez um dia tivessem uma, iria tentar convencer o pai.
      Naquela noite, dormiu tentando imaginar como seria uma geladeira. De diferente em sua casa só havia o rádio. O resto era mesa, cadeira, o armário das louças, os guarda-roupas e as camas. Igual como na casa do padrinho, dos tios e na casa de Seu Antônio Carvalho, amigo do pai na rua de cima. Aquelas eram as casas onde já tinha ido.
      Quando o dia amanheceu, foi tomar café na cozinha. Comeu muito. Sonhar tinha dado fome.
      Bateram na porta, a mãe foi abrir. Era a vizinha e... os meninos!
      "Trouxe uns picolés pro seu filho, D. Neuza", ouviu a vizinha dizer, sem saber o que era picolé. Reparou que a voz da mãe dos meninos era tão bonita quanto a voz de D. Lídia, que cantava no coro da igreja.
      "Experimenta, Dudu, olha o que D. Inês te trouxe, meu filho", disse a mãe. Experimentou. Nunca, mesmo que viesse a conhecer todas as experiências do mundo, mesmo que crescesse, viajasse e experimentasse todas as maravilhas da culinária, os doces das melhores confeitarias do mundo, nada, definitivamente nada se assemelharia àquela delícia. Nunca experimentara, em seus oito anos, coisa tão maravilhosa. Picolés de groselha! A maravilha daquele adocicado licoroso, anestesiando a língua, fixando-se entre os dentes. Geladinho! Doce! Delicioso! Derretendo! Tinha que aproveitar depressa aquele prazer indescritível que se esfumava como algodão doce no calor da boca. Só que era gelado! Vidros avermelhados.
      Comeu e se lambuzou. Um, dois, três. Virou refresco friinho, que ele bebeu como alguém que nunca soubera que no mundo havia outras coisas tão deliciosas quanto o guisadinho e o pudim de claras da mãe.
      O estado em que ficou era de torpor. Igualzinho como no sonho de outro dia quando sonhou que voava. Não se preocupou que ali, na sua casa, estavam também os meninos que acompanhavam a mãe.
      Acordou depois do sonho do picolé de groselha. Ouviu, como se ouvem as vozes nos sonhos, a vizinha mostrar os filhos para a mãe. Olhou, como quem acorda, os dois olhando para ele e rindo, rindo de sua estupefação com os picolés.
      "Meus filhos, D. Neuza", disse a outra mãe, "Carlinhos e Zeca". Carlinhos e Zeca! Gostou de saber-lhes os nomes. O primeiro, o maior, o chefe; o segundo, o menor barrigudinho.
       “Meu filho ó o Eduardo, Dudu", disse a sua mãe, enquanto lhe limpava a boca vermelha com o avental. "Minha filhinha Ana Maria" (mostrando o nenê no berço). "Agradece pros meninos os picolés, Dudu".
      O olhar que se deram não precisava de palavras: era uma trégua na guerra. Guerra que de fato não houvera e não passara de exibição de forças.
 
     “Meus filhos estão matriculados na escola. Será que eles podiam ir com o seu? O Carlinhos vai ser colega do Dudu no segundo ano, seu marido disse para o meu. O Zeca começa agora no primeiro".
      Lembrou-se que as férias acabavam. Pensou no quanto passaram rápido. Lembrou do Natal quando ganhou o trator (ainda ontem!). Lembrou-se que era sexta e que segunda começava de novo: menos tempo para as brincadeiras, os deveres. Lembrou-se da mãe anteontem e ontem, encapando os cadernos e dizendo: "Dudu, meu filho, as aulas começam segunda". Não que não gostasse da escola, mas a magia do seu quintal superava tudo.
      A segunda-feira chegou com muito mais pressa do que gostaria. O quintal passaria a ser restrito aos fins das tardes, depois dos temas.
      Depois do café, cadernos na pasta, merendeira pronta, encontrar os meninos. Não se falaram nem se viram no domingo. Foram passear não sabia onde.
      Teve vontade de rir quando encontrou os meninos. Penteados e abotoados como quem vai à missa. Iriam pelos trilhos do trem, indicou o caminho com o dedo, fazendo-os acompanhar.
      Caminharam juntos metade do caminho sem se falar. Notou que o menor cutucava e provocava o maior. Na falta do que fazer, apanhou uma pedra e atirou longe. Exibiu maestria. O maior imitou o seu gesto e atirou outra. Não tão longe. Sentiu prazer na vitória. O menor também tentou. Mais curto ainda o tiro. O menor quebrou o silêncio, para alívio da situação.
       “Um dia a gente podia botá pedras no trilho pra fazê um desastre do trem".
      Era um dos seus, tinha certeza, concordou rindo e dizendo que talvez amanhã.
      O maior, encorajado pelo menor, perguntou se um dia ele lhe emprestava o trator. Ele respondeu que sim, dizendo que queria brincar de atolar o jipe e jogar bola com eles. Resolveram ali unir os exércitos. Se outros meninos viessem para as outras casas que estavam vazias, eles e os dois seriam aliados. Para sempre. Pensaram nas mamoneiras só nas duas casas. Seriam imbatíveis.
      Prometeram, com a sinceridade com que começa a parceria dos meninos, que seriam sempre companheiros. Trocaram merendas como prova de aliança. No recreio, na escola, brincaram juntos como se fossem amigos há séculos.

domingo, 14 de outubro de 2012



Comentário do professor Carlos Alexandre Baumgarten prefaciando “Os comedores do vidro”, livro do autor, sobre este conto: “Em ‘O acerto das horas’, encontramos o narrador já adulto, vivendo suas experiências profissionais e amorosas, no ambiente de uma editora responsável pela publicação da revista Clara. O conto, diferentemente dos anteriores, reveste-se de um caráter intertextual significativo, uma vez que as referências literárias a Fernando Pessoa e a James Joyce são explícitas. Mais do que isso, o texto, na sua efabulação, vale-se de motivo presente no conhecido poema “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade; a diferença é que, no conto de Geraldo, tudo acaba bem para o narrador que amava Isabela, que gostava de Gino, que gostava de Diana, que gostava do narrador. “O acerto da horas” revela, ainda, um narrador mais seguro e ousado na arte de narrar, ao promover o cruzamento de registros discursivos de origem e natureza diversas.”.






O ACERTO DAS HORAS


Se alguém quer saber no que nos tornamos, eu, Diana, Gino e Isabela, precisa de início pensar no sentido contrário dessa ordem em que os nomes foram expostos. Precisa tomar como exemplo um relógio: eu no lugar do 12, Isabela no lugar do 3, Gino no lugar do 6 e Diana no lugar do 9. Na ordem e direção em que seguem os ponteiros, na ordem em que segue a vida: para a frente. O 12 tentando alcançar o 3, o 3 tentando alcançar o 6, o 6 tentando alcançar o 9, o 9 tentando alcançar o 12.
O final do ciclo de uma hora acomodaria as coisas. Iria estancar os ponteiros, organizar os encontros, frutificar as buscas, distribuir os pares.
Éramos três,a princípio: eu, Diana e Gino. Trabalhávamos, nessa época, na editora. Na revista “Clara”. Eu como editor-chefe, a Diana como copy desk e o Gino de fotógrafo. Bem no início, antes que a história de nossas vidas tomasse o desdobramento que tomou, não achávamos que tivéssemos outras coisas em comum, pelo menos eu e a Diana. Éramos apenas amigos com perfeita sintonia no trabalho e perfeita harmonia descomprometida no happy hour, momento em que falávamos de variedades nunca muito profundas, quase sempre banalidades, conversas jogadas fora, como se diz na gíria, alívio de quem trabalha com a tensão de prazos e horários.
Gostávamos, como gostamos até hoje, dessas trivialidades, e era raro o dia em que não descíamos ao Pelicano para um chopinho. De certa forma já havíamos incorporado aquele hábito de duas horas depois do expediente. Era sagrado. Se tivéssemos compromissos, estes eram marcados para depois desse horário.
Quando conhecemos Isabela, de certa forma houve uma interferência em nossas vidas. Eu... caí de quatro literalmente. O Gino não demonstrou muito, mas também dava para ver, por seus olhares, que ela o atraía. Diana não escondeu seu aborrecimento nos primeiros dias, porque, afinal, aquela quarta presença desmanchava ou alterava nossa “santíssima trindade”.
O que é a vida? Até então eu nunca tinha pensado em Diana como uma mulher, ou seja, daquelas que dá vontade de arrastar para a cama como um bárbaro, enlouquecê-la de amor e depois casar ou abandonar, como até então eu sempre fizera.
Era experiente no assunto, já tivera muitas mulheres de uma noite, que depois abandonei esquecendo promessas, já tivera quatro meios-casamentos, de morar junto um tempo e depois desfazê-los. Até então eu não tinha pensado em Diana como esse tipo de mulher. Para nós, eu e Gino – pelo menos assim eu pensava -, ela era uma igual, para quem falávamos bandalheiras de nossas conquistas e aprontações com as outras. Ela, aliás, nunca tomou nenhuma atitude feminista de defender as mulheres “ultrajadas”, porque, personalidade forte como era, achava que aquelas que não se defendiam tinham mais é que arranjar bandidos como eu e o Gino. De certo modo, eu sentia que ela estava à espreita de que Isabela caísse em nossas garras, inconscientemente talvez, até torcendo para que isso acontecesse. Uma coisa, no entanto, a bem da verdade, precisa ser dita: nunca, em momento algum, Diana tratara Isabela mal no trabalho. Ao contrário, mostrava-se cooperativa e com grande senso profissional. O problema era no fim do expediente, pois agora ela tinha que dividir a nossa atenção com a outra.
Pra não deixar a história faltando um começo, preciso contar quem é Isabela e como foi que nós a conhecemos. Antes, no entanto, eu preciso dizer que a história que vou contar pode muito bem caber nas páginas de “Mulher Hoje”, “Femme”, “Domênica”, “O Jornal Feminino”, ou até mesmo “Clara”, nossa revista; qualquer uma dessas publicações que tratam o universo feminino com uma distinção tamanha e tão sem propósito, que fico me perguntando se vivemos, nós e elas, no mesmo mundo. A história que vou contar tem até a dose certa de “água-com-açúcar”, capaz de provocar lágrimas até do olho mais insensível, fazer leitoras ter sonhos insensatos, provocar rebuliço na alma das mulheres mais improváveis. “La femme rit quand elle peut et pleure quand elle veut”, já dizia um desses filósofos da vida.
Quando D. Vanda, nossa tradutora, se aposentou, Isabela foi a quarta tentativa de Seu Diamantino, o dono da Editora, para ocupar o lugar. Bacharel em letras recém-formada (apesar de ter sido numa faculdade do interior), alguma experiência como professora de inglês em cursinho e alguns cursos de verão, de conversação em francês. Não era exatamente um supra-sumo de currículo, mas na urgência em que andávamos e considerando a pobreza de nossa revista, até que resolveu. De fato, precisávamos que a pessoa que trabalhasse conosco aceitasse que o salário não fosse certo no fim do mês, tivesse uma alta carga de idealismo e compreendesse que, às vezes, a renda da publicidade mal dava pra pagar a impressão. Era a situação típica da vida profissional de alguém recém-formado e sem outra opção de emprego. Nós, mais velhos e experientes, nos garantíamos fazendo uns “frilas” que reforçavam a renda, encarando “Clara” como um trampolim que pudesse nos levar pra uma revista maior.
Importa que minha avaliação o Seu Diamantino respeitava, e isso contou muito para a contratação de Isabela. Ela era tão atraente que resolvi dar um desconto em sua pouca experiência, acreditando em minha capacidade de ajudá-la a aprender o serviço – o que seria prazeroso. Também com aquele porte! Ela era magra sem ser ossuda, cabelos longos e pretos, morena, boca e pernas desejáveis e usava minissaias estonteantes.
         No princípio, tive que penar muito para convencê-la e ensiná-la que uma tradução editorial não era apenas traduzir literalmente alguma coisa. Trasladar era mais interpretar o pensamento de um autor, escrever como se fosse ele, considerando a diferença das duas línguas, coisas assim, Confesso que, se ela fosse feia, eu não teria tanta paciência. De certo modo, ela até que aprendeu razoavelmente rápido.
O que interessa é que logo, logo, ela entrou na turma e passou a dividir conosco a mesa do Pelicano. Agora, conscientemente, eu descubro que até de um modo exagerado, eu tentava impressioná-la, O sorriso crítico e o olhinho apertado de Diana quando eu falava com Isabela, deveria ter sido suficiente para que eu percebesse.
Não fui, no entanto, precipitado em minha estratégia de conquista. Sempre acreditei que “o prato de mingau quente deve ser comido pelas bordas”, por isso alinhavei bem o meu roteiro, para dar o bote na hora certa e conquistá-la.
Aproveitei bem, pelo menos no início, uma chance que eu tive. Tínhamos como incumbência para a edição da revista daquela quinzena um artigo de um médico irlandês sobre cirurgia de mama sem mastectomia, cheio de termos técnicos, trabalhosos de traduzir. Como era sexta, e para o sábado tínhamos que deixar pronto um artigo sobre os lançamentos de um costureiro, paginar e escolher fotos, o artigo do médico podia ficar para segunda. Só ficaria faltando ele. Talvez eu não tivesse chance igual nos próximos anos. Convidei-a para um almoço em minha casa no domingo, quando então poderíamos discutir o artigo. Foi difícil convencer Gino e Diana que eles não estavam convidados. Como editor-chefe, recomendei para Diana que trouxesse pronto outro trabalho e descobri para Gino uma prova de motocross, seu hobby favorito.
A gente quando se apaixona comete bobices sem tamanho. Antes do convite mandei para ela um vasinho de violetas com versos de Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos:

 “Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
             Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã.
             E assim será possível; mas hoje não...
             Não, hoje nada; hoje não posso...”

Tentava impressioná-la com os versos emprestados, hoje reconheço que de uma forma tão sutil que era quase incompreensível, mas era o recurso que achei naquele momento. Ela, causando-me um arrepio que a paixão suplantou, perguntou-me de quem eram os versos. Respondi: Fernando Pessoa sob o heterônimo de Álvaro de Campos, e ela me perguntou: “hetero... o quê?” Deixei passar e fiz-lhe o convite. E ela: “Sim. Pode ser. Quando? Domingo? Tá legal, acho que é um dia legal. O Gino e a Diana vão também?”
         Enquanto eu descascava as batatas do almoço, tentei espremer a cabeça pra tentar me lembrar de um incentivo qualquer dela, codificado, naquele instante fugaz da resposta ao convite. Se houvera, não consegui perceber. Até porque estava um pouco nervoso e com ansiedade. Lembrei-me apenas, porque, para apenas uma palavra meus sentidos estavam alertas: para o sim. Aquela palavrinha havia sido suficiente para que eu acreditasse nela como a chave que abriria todas as portas. Competiria a mim, com minha habilidade, conseguir o pretendido.
         Naquela sexta não fui ao Pelicano. Estava me guardando para o domingo. Fui fazer compras no supermercado e preparar-me para o grande dia.
         Pilotei o fogão, ensaiando o prato que faria no domingo. Precisava impressioná-la.

PORTAFOGLIO AO BRIE E PISELLI

Ingredientes:
         2 pedaços de filé de 200 gramas, queijo brie, sal, pimenta-do-reino, farinha de trigo, 2 colheres de sopa de manteiga, 4 colheres de sopa de óleo de milho, 2 cálices pequenos de vinho branco seco, 2 conchas de caldo de carne, ervilhas.
Preparo:
         Corte o filé no sentido horizontal, obtendo quatro fatias, e bata cada uma delas até ficarem bem finas. Coloque sobre elas, duas de cada vez, um cubo grande de queijo brie e feche, pressionando a borda com os dedos. Tempere com sal e pimenta-do-reino, passando-os após na farinha de trigo, para segurar o suco. Frite durante cinco minutos cada lado, até dourar bem. Retire o excesso de gordura e jogue o vinho branco na frigideira. Espere evaporar, complete o cozimento com caldo de carne e duas colheres de sobremesa de manteiga fria. Reduza o molho em 1/3 e, antes de desligar, acrescente um punhado de ervilhas previamente cozidas. Sirva com purê de batata.

Fiz quatro vezes aquele prato. A primeira, na noite depois que ela aceitou o convite, a segunda no almoço de sábado, a terceira e quarta na noite desse mesmo dia, tentando memorizar os ingredientes para não fazer feio. Na primeira vez ficou muito salgado, na segunda o purê ficou embolotado, na terceira esqueci de tirar o excesso de gordura, na quarta não me lembrei de cozinhar previamente as ervilhas.
Sobremesa e bebida para acompanhar não era problema: uma torta de maçã que minha mãe me ensinara e um Cabernet correto.
Só torci para tudo dar certo com o prato principal, que, aliás, parece que deu, pois o gato do telhado gostou muito.
Convenientemente havia preparado o ambiente. Uma faxina completa no apartamento, o Ulisses de Joyce estrategicamente visível, Billie Holiday na vitrola cantando “A Fine Romance”, lençóis limpos e cheirosos (pensando em eventualidades), avenca podadinha na janela, meus troféus esportivos, e a camisa vermelha desbotada e charmosa que me dava um ar de intelectual.
Ela veio com um atraso de quase uma hora. Não viu o Ulisses, perguntou quem era a mulher de voz estranha que cantava, não comentou nada sobre minha camisa e disse que não demoraria muito porque tinha um batizado da filha de uma amiga. Trouxe pronta a tradução que um antigo professor a ajudara a fazer, e nem notou a produção. O pior foi quando ela disse: “Desculpe, esqueci de dizer que não como carne”, pediu um refri porque não bebia em hora de almoço e impacientemente olhava o relógio sem prestar atenção na avenca com suas folhas tenras e verdes como esmeraldas.
Menos mal que eu tinha umas coisinhas para improvisar uma salada e havia umas garrafas de Coca na geladeira. Me senti como um menino de quem roubaram o doce. Comemos calados e sem assunto. Assim, com a mesma pressa com que chegou ela saiu, deixando o artigo de oito páginas para que eu lesse, (corrigisse se precisasse) e nem me ajudou a lavar a louça.
É claro que na segunda-feira eu estava de péssimo humor. Descontei minha raiva no boy da editora que deu o azar de me trazer papéis errados, mandei o Gino refazer fotos e Diana prestar mais atenção no serviço por causa de um pequeno erro de pronome. Para Isabela mandei um dicionário de termos técnicos que comprei naquela manhã, com um lacônico bilhete, dizendo apenas: “Acho que você está precisando disso”.
Fui com eles ao Pelicano só na quarta e na quinta, mas definitivamente, não estava para muitas conversas. Deu pra notar que de vez em quando a Diana com um leve sorrisozinho cínico me observava, que Isabela pela primeira vez se revelou interessada em motos e pediu a Gino que a levasse um dia pra vê-lo competir.
Passaram-se duas semanas naquela frieza. Dia sim, dia não, Gino e Isabela apareciam por lá cheios de conversinhas, como se eu e Diana não existíssemos. Já não saíamos mais juntos do trabalho como fazíamos. Eu e Diana mantivemos o costume, até porque eu já estava mais calmo e descobrindo que quem não conhecia Fernando Pessoa, Billie e Joyce não era para mim. Comecei a prestar atenção no fato de que Gino não era mais tão gentil com Diana, não fazia mais aquele olho de peixe morto que fazia para ela quando estava bêbado e nem lhe confidenciava uma antiga paixão não correspondida, como sempre fazia depois da quarta ou quinta dose.
Estávamos estranhos, todos nós.
No dia seguinte, só eu e Diana fomos ao bar. Definitivamente nosso grupo já era mais o mesmo. Eu e ela aproveitamos para discutir umas matérias pendentes. Confesso que não pensei em nada quando Diana me convidou para almoçar em sua casa naquele domingo. Pensei apenas na questão do trabalho e nunca me passou pela cabeça que iria acontecer o que aconteceu.
Cheguei na hora marcada, porque sou educado. Levei flores e uma garrafa de vinho, porque sou gentil. Nunca antes havia ido à casa de Diana.
Agora, relembrando, penso no sentido das horas do relógio: sempre para a frente, determinando o tempo, determinando a passagem dos dias. Dias que são frações de um tempo transbordante de surpresas a cada passo que os ponteiros dão para a frente. Impossível prever o minuto próximo, mais ainda a próxima hora, e, muito mais ainda, as conseqüências do final de um dia.
Diana me recebeu na porta e de repente eu estava tendo a surpresa de descobrir que até então eu nunca tivera a sensibilidade de notar que ela era uma mulher bonita. Uma gracinha: pequenina como um a porcelana delicada, pele clarinha, cabelos louros curtinhos, mais gordinha do que magra, dando uma vontade imensa de tocar, de abraçar.
Entrei na sala com Billie cantando “My Man”; descobri, na estante, muitos livros que eu gostava, um álbum de fotos disfarçado de caixinha de música e avencas muito bem cuidadas na janela.
De almoço, preparado por ela, “Involtinos de carpaccio ripieno di avocado ed erba cipolina”, um prato delicadíssimo. Vinho delicioso e uma mousse de maracujá que nunca alguém poderia esquecer depois de provar.
Depois, durante o licor, o álbum: fotos lindíssimas, dela neném, dela garotinha, dela adolescente e dela adulta. Muitas dessas últimas tiradas por Gino, fotos espontâneas no ambiente de trabalho. Uma dessas fotos me chamou a atenção. Eu, ela, e D. Vanda no balcão do cafezinho, foto que eu nunca tinha visto e na qual ela olhava para mim com um olho brilhante. Alguém já disse que a fotografia é um momento congelado na vida das pessoas para que se possa olhar e prestar atenção em detalhes que sejam impossíveis de atentar na pressa do dia-a-dia. Confirmei mais uma vez: como eu vivia cego e nunca prestara atenção naquela mulher. Era como se eu estivesse sendo apresentado, nunca a tivesse visto antes e estivesse tendo uma revelação.
Depois de tudo que aconteceu – que eram as coisas previsíveis de acontecer, dadas as circunstâncias – enquanto tomávamos uma ducha, ela disse para mim: “Sabia que o Gino já me passou várias cantadas? Não sabia? Sabe porque eu nunca aceitei? Por sua causa. Tinha certeza absoluta de que um dia eu te alcançava. Surpreso?”
O 9 alcançando o 12. Enlaçando. Seqüestrando. Dizendo: não solto mais.
Claro que eu teria ficado surpreso se ela me falasse daquilo fora do contexto, no sábado, na mesa do bar, por exemplo. A hora não teria sido a certa. Agora não. Eu descobria o correto caminho das horas do relógio, o intrincado movimento do tempo determinando sub-repticiamente os acontecimentos, calculando momentos, arrematando a teia do destino.
Confirmei isso na segunda-feira, acordando do lado dela, usando apenas um carro para ir para o trabalho e vendo que o céu da manhã era muito mais azul do que até então eu pudera perceber. Descobrindo na editora a foto de Isabela embarrada, beijando o Gino campeão em sua moto. Percebendo que eu         , que antes gostava de Isabela, que gostava de Gino, que gostava de Diana, que gostava de mim, transgredíramos, enfim, o movimento contínuo e errado. O 9 se juntara ao 12, o 3 se juntara ao 6, corrigindo, nos intrincados movimentos do tempo, a busca errada dos ponteiros do relógio.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Antonio e Janice - Mais um conto do futuro livro...









ANTÔNIO E JANICE


“E se a gente não voltasse?”
A pergunta feita assim, num rompante, esparramou-se – vendaval incontrolado – no salão do Bar Marília. Escorreu nas garrafas de vinho, equilibrou-se no lustre como trapezista, planou em cima da mesa como uma gaivota bêbada e esvoaçou perfumada pelo hálito da voz de Janice frente a um atônito Antônio. Uma onda de calor confundiu o frio. Na particularidade daquela interlocução, os que comiam nas mesas vizinhas pareceram congelar as conversas, os copos no ar, os mastigares. No silêncio atenuante do depois, as palavras buscaram a janela, empurraram a cortina e foram tragadas por uma lufada de vento da noite ouro-pretana.

..................

         Uma frase interrogativa como essa, no contexto em que foi colocada, precisa ser mensurada. Precisa que se avalie emissor e receptor, antecedentes e conseqüências, quem falou, quem ouviu e como. De um lado, por mais cruel que seja a definição: Janice, uma sugadora de almas e romântica inconseqüente. Do outro lado: Antonio, prático, incontido... ambicioso. O modo: sem preparo, sem o contorno que amacia as palavras, sem o cálculo de como podem ser recebidas. Pergunta temida talvez..., adiada há tempos por segurança, por medo da reação não ser a esperada. Pergunta que tinha um caráter de decisão.
Se a vida real fosse como nos filmes, Antônio beijaria Janice e o resultado de tudo seria feliz. Por mais que ruídos estranhos contaminem as vozes que proferem juras de amor, por mais que um vento fora de hora desmanche um topete; por mais que a falta de uma música não componha devidamente a atmosfera romântica, é norma que a vida real conduza os casos de amor para desfechos que podem ser ou não felizes: ou tudo corre, numa alternativa otimista, muito bem como o simulacro de um filme, ou acontece aos sobressaltos – momentos bons contaminados por momentos ruins. O caso de amor de Antônio e Janice sem a unção dos deuses românticos não fugiria à regra, porquanto o mundo de verdade carece de uma mão mágica, com pena bondosa que floreie a caligrafia dos caminhos.
                       
..................

         “Ouro Preto me deixa louca...! Queria que nossos momentos pudessem ser abertos para o mundo!” Disse Janice, na seqüência, olhando nos olhos de Antônio. Antônio, pasmado, olhou os olhos negros da amada. Sem saber o que dizer.
         A taça de Antônio parou à beira dos lábios, o cheiro rascante de vinho tinto inundou-lhe o olfato. Inspirou. Depois a beira do cristal foi tocada como um beijo, o vinho foi sorvido, espalhou-se no palato como uma enchente e escorregou pela garganta deixando um rastro de álcool, uva e calor.
         A frase interrogativa de Janice tivera o poder de silenciar outras falas, apagar a música, emudecer os galos da madrugada, o retinir dos talheres e o barulho agudo dos copos.
         Janice tinha olhos negros enormes. Olhos que sufocavam Antônio. Olhando-o percebeu que ele suava. Riu quando ele tentou acender o cigarro virado com o lado do filtro exposto ao fogo do isqueiro. Janice enxugou-lhe o suor, com os dedos cheios de anéis, Falou mais uma vez:
“E então? O que você acha?”
As duas frases curtas não tiveram o efeito de vendaval da anterior, mas despertaram em Antônio a obrigação de dar uma resposta. Engoliu em seco enquanto pensava no poder que aqueles olhos exerciam em sua alma. Olhos negros que fitavam-no arregalando-se indagadores enquanto ele, ganhando tempo, tentava desembaçar os óculos com a ponta do cachecol.
“Esta é realmente uma proposta muito séria. Pode ser verdade ou uma brincadeira...”. falou sem responder - mais para si do que para ela -, tentando sorrir e aparentar tranqüilidade. Riu um pouco mais, inconscientemente talvez, tentando acreditar que ela brincava. Com dificuldade de entender se tudo aquilo era um blefe, pediu a Olinto, o garçom, um conhaque quase como quem pede socorro.
“Ainda tem vinho na sua taça!” ela chamou-lhe a atenção, mostrando-se segura e organizada.
Antônio olhou para Janice com olhos de duelo e jogou a cabeça para trás olhando o teto e as mariposas na luz. Deixou que seus pensamentos se expandissem. Direcionou-os para fora e reconstituiu a praça de Ouro Preto. Deixou que vagassem desembaraçando a neblina e imaginando a praça de um plano mais alto; plongée panorâmico como se tomasse os prédios de cima de uma grua. Percorressem a Escola de Minas, o Hotel Pilão, as lojinhas de pedra-sabão, descendo um pouco até a igreja de São Francisco, entrando e vendo o santo no teto recebendo os estigmas do Monte Alverne, voltando depois pelos fundos do Museu da Inconfidência e invadindo de novo o Bar Marília, como uma alma que tivesse passeado e voltasse ao corpo.
Ouro Preto tinha mistérios. Ele sentia prazer em conhecer tão bem a velha cidade. Ele, um artista que não deu certo, tinha outro emprego. Mesmo assim voltava sempre que podia para desenhar Ouro Preto. Conhecera Janice numa dessas idas. Desenhava o a Casa da Baronesa. Ela elogiou-lhe o desenho, conversaram bastante enquanto passava uma garoa rápida e ele convidou-a para beber, coincidentemente no Bar Marília. No rádio do bar, Ray Charles cantava.

..................

Por mais que alguém jure não ser romântico, sempre haverá nos seus casos de amor uma música específica que serve para etiquetar essas relações. No caso de Antônio e Janice era “Sweet Memories” com Ray Charles. Poderia ser “As Time Goes By” com Jimmy Durante, poderia ser “Always on My Mind” com Elvis, “Blue Gardenia” com Nat King Cole, ou até mesmo, porque não, as brasileiríssimas “Buquê de Isabel”  de Sérgio Ricardo ou “Por Toda a Minha Vida” de Tom e Vinícius, músicas que tocaram no rádio naquela tarde que a curiosidade de um pelo outro ampliou-se até que se esquecem  das horas. Pela primeira vez, numa dessas músicas, os dois se olharam nos olhos e sentiram-se eletrizados.

..................

         Ah! Os mistérios de Ouro Preto! Tantas vezes os dois ouviram assombrados o canto orfeônico dos galos nos quintais ou o afinado barulho do vento assobiando melodias de tempos passados. Quantas vezes nas madrugadas neblinosas! Neblina que escondia, frágil, os morros e o Pico do Itacolomi, como a camisola transparente que revelava o corpo de Janice.
         Tantas vezes imaginaram-se numa dimensão diferente do tempo real. Se Antônio fosse romântico como Janice, poderia se imaginar Dirceu e ela Marília. Ele poetando em seu louvor, como se aquilo fosse lembrança de vida passada, do século XVIII, em alguma arcádia ouro-pretana.
..................

         Janice não era Marília, Antônio não era Dirceu. Há muito Antônio deixara de ter essas sensações românticas juvenis. Cultivava um sentido prático na vida – conveniente. Janice sim, é que sempre tivera zelo pelas pequenas particularidades daquela relação, como guardar o guardanapo dobradinho no qual ele escreveu “Tou gostando de você” no segundo encontro dos dois; o lacre da garrafa de vinho que tomaram juntos na primeira noite antes de se darem um ao outro; a embalagem do primeiro sabonete do primeiro banho a dois: “sweet memories”.

..................

         Brincavam. Inventavam histórias como se vivessem num filme Tantas vezes juraram ver fantasmas de damas e fidalgos descendo e subindo... descendo e subindo, a ladeira da Casa dos contos,
Agora ali, na crueza do mundo dos mortais, ela impunha-lhe que decidisse o futuro dos dois. Sem o preparo, sem a fala preliminar que conduz, sem o “bater na porta” que anuncia.
Até aqui as coisas seguiam seu curso normal. Os encontros dos dois acontecendo nos sábados possíveis, combinados nas quintas ou nas sextas por telefone, em código. Combinados com antecedência para que os dois tivessem sempre tempo de fabricar desculpas, ele para a noiva, ela para o marido. Tudo contribuía para que se pudessem ver tanto. Silvia, a noiva, não gostava de Ouro Preto e achava “tudo uma velharia”; o marido dela, Argeu, advogado, ocupadíssimo com as causas pendentes e pesquisas jurídicas. Encontravam-se sempre na casa branca de janelas azuis, ao lado da Igreja do Pilar. Janice alugara o ninho do amor. Encontravam-se sempre com um abraço apertado. Excitados sempre pela situação irregular que viviam. Faziam amor por toda a tarde, querendo eternizar o tempo. Jantavam depois no Marília e faziam de volta, o trajeto dos fantasmas, descendo a rua da casa dos Contos e se amavam, de novo, até o domingo. No fim dos domingos voltavam, ele com alguns desenhos esboçados e ela, que ajudava o marido, com pareceres advocatícios disciplinadamente feitos nos intervalos.

..................

A bem da verdade, Antônio gostava de Janice. Até então não experimentara com outra a fulgurante relação sexual que praticava com ela: esmiuçamento de caminhos, descobertas diárias, ordenamento de etapas e a explosão de gozo tão intensa. A diferença – pêndulo que desequilibrava – é que Janice estava cega de paixão. Antônio era sua manhã de primavera, seu céu azul, sua música no ar, prazer arrebatador que imiscuía-se nos seus poros, enchendo-a de prazer.

..................

         Mas ali, naquele momento, no interior do Bar Marília, uma pergunta estava parada no ar, esperando resposta.
          Ciente de que, se ele pensasse muito, vacilaria, ela falou:
         “Parece loucura, eu sei... é uma decisão difícil e tou te botando contra a parede. Mas, se somos tão felizes aqui não é justo que seja tudo tão provisório, que a gente tenha que se encontrar sempre às escondidas. Temos que chutar o balde, Antônio, e escolhermos ser felizes. Meu Deus do céu, a gente se completa! Nunca antes, eu havia pensado em ser possível gostar tanto de alguém! Tenho certeza que você gosta de mim igual. O quê que impede a gente? Começamos do zero, se for preciso. Trocamos de nome, se for necessário. Arnaldo e Maria Luíza..., José Alberto e Patrícia, Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, sei lá...! Faço qualquer negócio! Eu tenho dinheiro. Dinheiro que dá, para, no mínimo, a gente viver os meses iniciais. A nossa casa já existe e o aluguel está no meu nome. Posso abrir um escritório pequeno para começar. Você pode voltar a desenhar. Não me importo de viver uma vida simples com você. O que importa, a cima de tudo, é ficarmos juntos”.
         Enquanto falava, sem intervalos para não dar tempo de Antônio pensar, Janice buscava espantar, ela própria, qualquer ameaça de dúvida sobre sua própria iniciativa.
         Foram seis ou sete cigarros fumados, acesos um no outro, duas garrafas de vinho e a surdez para o que acontecia em volta. Pareciam presos numa redoma, últimos sobreviventes de uma terra inabitada.
         “Telefono amanhã para a Ciça” continuou ela, “peço pra ela me mandar o básico, Mando o carro de volta pro Argeu com uma carta e depois eu emendo os cacos quebrados, Ligue pro seu irmão, peça pra ele mandar as coisas e enfrente a Sílvia. É mais fácil para você. Vocês ainda não são casados. Marca uma hora e um dia e vá falar com ela. Dê a ela um tempo para lamber as feridas. Agora..., o Argeu, não vai ser fácil ele entender, mas de certa forma, ele, homem inteligente que é, sabia que isso poderia acontecer um dia. Somos diferentes. De igual, só temos a profissão. Quanto às aspirações, esses quatro anos mostraram o que queremos. Nós não somos companheiros, cada um pensa em sua vida e em ganhar dinheiro...só isso...”
         No caso dela e de Antônio, ela nunca fora a dominadora da relação. Antônio é que dirigia as “loucuras” dos dois, mas, agora, embalada pelo entusiasmo, falava tão decisiva que assustava Antônio. Ela estava tomando as decisões.

..................

Se Janice fosse uma jogadora de pôquer, nesse momento estaria na situação do jogador que, desesperado, coloca seu mísero par de cartas baixas contra um Royal straight flush: de ouros.

..................

“Calma!” (disse ele suspirando) “Tenho que pensar. Me deixa sair um pouquinho. Sozinho”. Falou com voz trêmula, mas impositiva. Exigência que não permitia contestação.
         Saiu, não sem antes tocar-lhe a mão de leve no rosto, com um afago compensatório. O trajeto da mesa até a porta pareceu-lhe um labirinto.
         Na rua, aspirou o ar frio buscando fôlego e desceu lentamente, mãos no bolso, até o monumento da praça. Sentou-se nas escadas. À frente, o muro alto e colonial da escola; um pouco à direita, a música da boate do hotel: Julie London cantava “Laura”.

..................
         Fosse Antônio um jogador de pôquer, estaria perdendo o jogo por covardia e inexplicável medo do opositor. Um Royal é jogo invencível, ainda mais de ouros. Embaralhava as cartas no morto e não “pagava para ver”.

..................

         Largar tudo? Abandonar o compromisso do casamento acertado? Recusar a gerência que o sogro lhe prometera na filial de Juiz de Fora? Recusar o apartamento novo e montado que o sogro lhes dera? Como recusar Juiz de Fora, tão perto do Rio, do apartamento que a família usava, na Vieira Souto? Pensou na casa de Angra, em tudo que nunca tivera na vida, e que agora podia perder? Como? Pensou também em Sílvia, bonita, mas pouco inteligente, sem grandes vôos sensíveis, tão social, tão previsível. Pensou também nas pernas e nos seios de Sílvia. Pensou, com a praticidade de um calculista, comparando as duas. Pensou em trilhas previsíveis e trilhas de aventura. Pensou em prós e contras. Pôs numa balança. Pesou. Resultado de tudo foi a praticidade começando a vencer o devaneio.

..................

         Ponderações. Ponderações que fizeram Antônio entender que mesmo tendo perdido a jogada anterior, ainda tinha mais fichas que Janice para decidir o jogo. Preferia, no entanto, que essa decisão não fosse agora.  Queria mastigar essa idéia devagar e sem pressões. Mas cartas na mesa, chamavam para a “rodada de fogo”.
Tão difícil decidir tudo... e Antônio sabia. Até então, em nenhum momento de sua vida, Antônio se preocupara em medir a extensão do ocorrido, prever feridas, esperar cicatrizações. As paixões, Antônio deveria saber, eram irresponsáveis. Antônio, cômodo, se deixou empurrar pela mão dos dias. Mas era inegável: mesmo que a couraça dos seus sentimentos fosse incólume a esses arabescos de uma relação amorosa, não conseguiria esconder por toda a vida que sentia um frio na barriga e a respiração desordenada à véspera de cada encontro.

..................

Tentou em vão agarrar-se nos delírios e nas desordens poéticas das promessas que ele compactuara com Janice nos abraços na cama, mas conscientizou-se de que a fantasia escorria fugindo-lhe como areia entre os dedos: a razão nocauteando a emoção.
Acendeu novo cigarro e voltou-se para observar o bar. Lá estava Janice à porta, observando-o de longe e respeitando seu momento de reflexão. Metade de uma hora havia se passado.
Pensaram juntos – ele confirmando uma certeza e ele descobrindo o óbvio – que a questão havia sido colocada de forma precipitada, em hora imprópria e fatal.
Janice também havia pensado. Fumado muitos cigarros e pensado.
Advogada, casada com o antigo professor, vinte e dois anos mais velho, dono de um conceituado escritório de advocacia em Belo Horizonte. Começara lá como estagiária e aprendera tudo o que sabia dos meandros dos tribunais. Era boa advogada e respeitada também, apesar de ser relativamente jovem para a profissão. A vida com Argeu o marido, era boa apesar de tudo. Vida de muito conforto: apartamento duplex nas Mangabeiras, casa em Arraial do Cabo, muitas viagens, o Automóvel Clube... Pensou em Antônio indomado, não suportando viver às suas custas. Pensou, colocando-se agora como a “mais velha” da relação que os sete anos de diferença entre eles pudessem pesar no futuro, não conseguisse manter aceso aquele fogo de paixão. Pensou que talvez a rotina pudesse fazê-lo triste... Pensou e teve dúvidas se seria mesmo capaz.
Foram um de encontro ao outro, abraçando-se com a noção de despedida. Eram apenas os dois na rua, os carros de vidros embaçados e as luzes dos postes camuflados na neblina. Na boate do hotel, um jazz confuso de ator inidentificável.  
“É... não dá! Foi loucura!” Antônio quebrou o silêncio, trazendo ainda no olfato a marca dos cabelos perfumados de Janice.
Ambos tiveram medo de se olhar nos olhos.
“É... mas... valeu!” Concordou ela escondendo nos olhos, o limiar de uma lágrima.
“Sinto que algo se quebrou...” Antônio falou, sem conseguir arrematar a frase, e sem conseguir olhá-la nos olhos. Fez-lhe um afago com as mãos. Janice encostou a mão dele em seus lábios, beijando-a. Não disse nada.
Abraçaram-se, mudos. E ficaram assim até que a claridade viesse descascar o escuro da madrugada e os primeiros ventos das manhãs começassem a varrer os papéis da rua.
Desceram até a casa. A ladeira da Casa dos Contos, sem fantasmas, traziam apenas os que iam às missas.
Chegaram. Abriram a casa. Arrumaram as coisas e dobraram os lençóis. Fizeram tudo tímidos, como se não fossem íntimos.
Um dos dois precisava quebrar o mutismo. Coube a Antônio este papel.
“Você concorda que talvez devêssemos dar um tempo?” Pergunta que escondia, subliminar, um “tudo acabado” ou um “cada um siga o seu caminho”.
“Errei! Não era uma boa hora para colocar aquela pergunta.” Janice falou tangenciando a indagação de Antônio.
“Acabou!” Disse ele pegando o último cigarro do maço.
Enquanto juntava no banheiro os objetos pessoais, Janice reviu os planos com que sonhara: os dois morando juntos, ficando velhinhos, olhando turistas pela janela e nunca, nunca mais saindo de Ouro Preto. Os amigos que fossem amigos deveriam visitá-los e eles ficariam ali, se lignificando como as heras, absorvendo o cheiro dos ventos e se transformando no encontro de Marília e Dirceu que a história e o destino interromperam.
Impossível!
Combinaram se esforçar para não sofrer. Deveriam buscar métodos de administrar as lembranças e fazer de conta, da melhor maneira possível, que tudo o que tinham vivido havia sido um desses sonhos bons que merecem mais saudades do que tristezas.
Fecharam a casa como quem lacra um pedaço da história. Antônio propôs que Janice fosse primeiro. Ele daria uns vinte minutos antes de também partir. Cada um no seu carro, vidros abertos para que o vento limpasse os cheiros de um e de outro. Janice sabia que ia chorar enquanto voltasse. Muito!
Antônio tentou ainda devolver à ela a fita de Ray Charles e ela, com prudência, recusou. “Combinamos esquecer, lembra?”
É melhor”! Disse ele tentando descobrir no céu um pássaro errante, um avião, qualquer coisa que a evitasse ver seus olhos vermelhos.
O último abraço foi de olhos fechados. Sem beijo. Quando Janice se soltou do abraço, Antônio não quis abrir os olhos. Contou mentalmente alguns minutos, ouvindo o barulho do carro dela dar a partida e ir diminuindo até virar a esquina. Comprou, na quitandeira do lado, dois maços de cigarro. Dirigindo-se ao carro olhou sem vontade  a velhinha da casa da frente molhando as avencas atrás da gelosia.

..................

Antônio deu a partida no carro. Subiu a rua, buscou a BR e abaixou os vidros. Buscou no dial uma estação de rádio que não tocasse música. Desenrolou a fita de Ray Charles e atirou-a pela janela. Ovacionado pelo vento, o cassete de asas embandeiradas farfalhou como um beija-flor até se estatelar como um cadáver de plástico no asfalto negro.