Adianto um conto de meu livro futuro, por causa do episódio com o jogador brasileiro Daniel Alves. Só que este conto foi escrito em 2009 e nem se imaginava que um brasileiro responderia tão bem, e á provocação de um insulto racista.
SIMÃO
Geraldo Roberto da Silva
Muito
já foi dito sobre os medos e ansiedades de um goleiro na hora do pênalti. Simão
tinha tudo para estar vivendo essas sensações, no momento fatal dos descontos
do segundo tempo, no "Coloso de la Herradura" lotado. À sua frente, Danubio
López, o matador. Entre os dois, a bola de gomos brancos e negros. Atrás e nas
laterais, uma massa ensandecida pronta para soltar o berro da vitória, no
momento em que a rede se estufasse pela ação do chute sem misericórdia que
viria tão logo o juiz apitasse. Atrás de Danubio, os jogadores de vermelho
prontos para um eventual rebote ofensivo e os de azul, dispostos a espanar para
longe o mesmo rebote. Todos com os corações aos saltos... Atrás desses, o
gramado verde, estendido como uma infindável e grave passarela vazia, o grande
muro de anúncios na parte frontal da ferradura e as luzes dos refletores
brilhando à frente de um céu de estrelas. Aquele gramado tinha tradições.
Histórias de sangue e batalhas campais com vencedores célebres e perdedores que
a história não perdoou. Neste instante, no limiar do duelo entre Danubio e
Simão, a grama era de uma cor úmida, verde escura e amarronzada pelo barro de
chuteiras que o tempo se encarregaria de tornar históricas.
Por
mais que se diga da gravidade que sempre foram os confrontos entre brasileiros
e castelhanos, é preciso que se busque a verdade da razão ao invés da emoção,
muito embora se saiba que em duelos dessa espécie, neutralidade é sempre
difícil. Um dos motivos talvez tenha sido a permanente arrogância de nossos
vizinhos mais ao sul do continente com a sua pretensa soberba européia, ao
contrário de nós, brasileiros, multirraciais, assumidamente morenos e menos preocupados,
que somos em não querer parecer o que a cor da pele nos desmentiria. E nessas
histórias (incontáveis!) sempre houve e sempre haverá muita paixão dominando a
verdade. A história de Simão na hora do pênalti é apenas uma, entre tantas, que
talvez pela peculiaridade dos fatos ocorridos tivesse causado essa quase lenda.
Com certeza, se fosse do lado contrário, a lenda se oficializaria e mais um
herói nacional se adicionaria aos outros tantos daquela parte do continente, ou
seja, a velha arrogância de se confirmarem os melhores em tudo seria
convenientemente aproveitada.
Quem
conta um conto aumenta um ponto... e a história que narro, talvez não escape
desse gesto falho e humano de sempre romantizar ou exagerar o fato narrado. Não
evito, até por que o fato em si, sem o bordado das palavras escolhidas, seria
reduzido na importância heróica que de fato teve.
Importa
dizer, que ao lado daquele duelo entre Danubio e Simão, havia coadjuvantes já citados. De um lado vestindo
camisas azuis e brancas, sete brasileiros restantes, tensos. Do outro lado, dez
jogadores arrogantes envergando camisas encarnadas. E pra ser mais preciso
ainda, permito-me dizer que se ouvia o barulho do vento noturno de agosto com
suave assobio de lamento, e mais ainda, creiam, os ouvidos mais apurados
provavelmente ouviam o ruflar das asas das mariposas que bailavam lentas entre
os postes de luz. Falta dizer, para ser mais preciso ainda, que no ar vagava um
cheiro de assado, carregado pela fumaça das churrascarias vizinhas do estádio.
Simão
pensava no improvável. Além da defesa que deveria tentar, ainda encontrava
tempo para pensar nas pernas bem torneadas de uma mulher loura... imaginária,
tão voluptuosa em seus pensamentos, que por pouco talvez o fizesse se esquecer
do compromisso da defesa quase impossível.
Nessa hora tão fatal, cada goleiro tem
o seu modo de reagir. Existem os que apelam fervorosamente aos santos de
devoção (e nesse quesito de santos de devoção, S. Judas Tadeu é o preferido),
existem os que escondem o medo num disfarçado morder de lábios ou olhos
fuzilantes que encaram o batedor rebatendo o olhar do algoz com uma bravura
falsa, e existem aqueles que abrem as portas da mente para que os pensamentos
busquem o bálsamo de outras sensações. Simão era como os últimos. Seus
pensamentos corriam livres como aquele vento noturno e choroso de agosto.
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"Macaquitos!
Macaquitos!" - um coro de setenta mil vozes alastrou-se das populares para
as sociais, como enxurrada incontida, fazendo estremecer as estruturas de
concreto do velho estádio. Começou -e se espalhou como essas correntezas
indomadas- quando o primeiro brasileiro apontou à saída do túnel. Uma guerra.
Cada jogador brasileiro sabia disso. Sabia também que iria enfrentar pontapés
com a complacência do juiz, cusparadas na cara, jogadores dopados, a torcida
agarrada no alambrado, jogando toda sorte de objetos no campo e a omissão do
policiamento. Era sempre uma guerra. Uma verdadeira guerra.
Muitos tentaram e ninguém ainda
conseguiu explicar profundamente o exacerbado fanatismo das torcidas e
jogadores castelhanos. Nenhum estudo psicológico ou sociológico conseguiu, até
hoje, elucidar o fenômeno da transformação. Sabe-se apenas que pacatos
bancários, comerciantes, professores, médicos, motoristas ou homens de qualquer
profissão, transfiguram-se quando a bola rola. Fanáticos. Os jogadores, por sua
vez, verdadeiros gentlemen fora do
campo, transformam-se em gladiadores bárbaros quando qualquer jogo começa.
"Sangre! Sangre!" gritava a
multidão que ensurdecia os brasileiros e faria tremer qualquer um que não
tivesse culhões. Fora sempre assim. Há quase cem anos. Desde que se
defrontaram, pela primeira vez, um time brasileiro com um de lá.
Simão sentiu e superou rápido o frio
na barriga quando Melo Leal, o técnico - antes de tentar invadir o campo e ser
contido pelos soldados e seus cachorros - mandou o preparador físico aquecê-lo.
Pompéia, o goleiro titular, contorcia-se de dor com a pisada desleal de
Fernandez, o número 11, aos quarenta e sete do segundo tempo, na faixa
imponderável dos últimos suspiros daquele jogo. Só restava ele. Simão. Antero,
o reserva imediato, nem viajara. Contundido há meses. Tonho, o terceiro
goleiro, também se machucara desafortunadamente no treino de segunda-feira.
Simão teve que pegar sozinho o primeiro vôo do dia anterior e se juntar aos companheiros.
Goleiro dos juvenis, com apenas três meses de clube, foi o último atleta
inscrito pelo clube para o campeonato, nem conhecia bem ainda os profissionais,
nunca andara de avião, nunca na vida havia pensado em entrar numa
"roubada" daquelas. Agarrar o foguete pelo rabo. Era jovem. Dezessete
anos.
Melo Leal olhou-o constrangido e com
piedade, quando lhe pediu calma e disse com a voz engasgada: "Vai lá.
Defende aquela porra!".
Simão entraria em campo para tentar o
impossível. Defender um pênalti. Pênalti que, se convertido, daria aos
"Rojos" o título de campeões da "Libertadores". O time
brasileiro havia vencido o primeiro jogo por 2 X 1 no Brasil. Pelos critérios
da confederação sul-americana, gol no campo adversário valia o dobro. Portanto,
bastava-lhes o 1 X 0. A torcida
deles já trepava nos alambrados,
explodindo foguetes. Cantavam hinos, batiam tambores e faziam um barulho
infernal. Simão não tinha escolha. Fora jogado dentro do caldeirão. Fervente.
Os
jornais locais publicaram manchetes na manhã do jogo: "Victoria o Muerte!", "Sucederá
Hoy!", Ganaremos, aunque sea con
sangre!", "Matenlos Rojos!", "Humaredo en la Herradura!".
Não
admitiriam perder, como aliás nunca admitiram, em toda a história. Até o
presidente daquele país, declarara a um jornal: "Ganaremos, sin duda
alguna.". Opinião que era respaldada por todos. Havia em cada pensamento
uma frase que era quase uma oração de fervor: “Esta noche, se puede, se
puede...”.
Tudo indicava que aquela era uma missão
impossível. Os brasileiros ouviam os castelhanos dando as entrevistas no rádio
e eles não escondiam o otimismo: “Hoy estamos mejor acoplados y las
individualidades están respondiendo. Quedar afuera, no!”.
Aquele jogo estava sendo uma guerra.
Guerra desigual, mas sustentada com bravura. Já houvera dois pênaltis, antes
desse dos descontos. Pênaltis escandalosos. Só que a favor dos brasileiros e
vergonhosamente não apontados pelo juiz. No primeiro, Sanchez, o número 3,
tirou a bola de dentro do gol com a mão, acintosamente, depois da cabeçada de
Militão. No segundo, Ortega, o número 6, deu uma tesoura voadora no peito de
Altair. Na cara do juiz, dois passos para dentro, da grande área. Quando Altair
reclamou, o juiz o expulsou. Os brasileiros jogariam desde os oito minutos do
segundo tempo, com dez homens. Nem isso os abalou. Mantiveram a bravura,
superaram-se e estavam contando com a sorte. Durante todo o jogo, o adversário
atacaria mais, só que afoitamente e em vias do desespero. O tempo corria rápido
e aquilo não era bom para os da casa. Até que aconteceu o pênalti.
Em um instante, tudo pareceu conspirar
contra a performance heróica mantida a duras penas.
O pênalti. Uma vergonha! Pompéia saiu
do gol, nos pés do atacante Luna, que fez a cambalhota cinematográfica e caiu
se contorcendo como uma minhoca no braseiro. Pura fita! Depois, Hurtado ainda
pisaria, sob os olhos do juiz, nas mãos de Pompéia, fraturando-lhe os dedos.
Pura maldade! Anselmo reclamou e foi expulso. Bicalho não agüentou. Deu uma
peitada no juiz e também levou vermelho. Só sobravam oito jogadores - abalados,
confusos e prestes a se deixar abater pela tragédia.
Confusão. Avelino Machado, o
dirigente, invadiu o campo para protestar. A polícia o engravatou e ele saiu
arrastado e levando bordoadas, perto da boca ávida dos cães “capa-pretas”.
Tiveram que atender Pompéia no campo. Está na regra. Tempo para Simão se
aquecer. O time brasileiro precisava ganhar tempo. Melo Leal gritava para os
seus manterem a calma e sua voz era abafada pelas setenta mil vozes que
cantavam. Pompéia foi retirado com violência e pouco caso pelos maqueiros e
Simão entrou em campo fazendo o sinal da cruz. Ia para o fogo. Levava consigo
uma toalha enrolada e as luvas descalçadas, para ganhar tempo. Aquilo provocou
a torcida, que reagiu disparando rojões para baixo, quase acertando o goleiro.
Nova parada. A polícia fazendo de conta que controlava a torcida. Os cães
babavam e latiam ferozes. O juiz esperava. O jogo parado, talvez estendesse
mais os descontos, mas era necessário esfriar o adversário. Jurandir Carvalho,
o delegado brasileiro da sul-americana, entrou em campo com a prerrogativa de
autoridade. A polícia tentou prendê-lo e foi contida pelo dirigente Juan Pablo
Ortiz. Juan Pablo sabia que Jurandir era influente na FIFA. Jurandir prometendo
incluir as irregularidades no relatório, interditar o campo, e os dirigentes
foram confabular. Duraria mais um bom tempo aquela interrupção.
Nesse intervalo, Danubio López, o
número 10, aproximou-se da bola parada na marca do pênalti e ficou olhando para
Simão com um sorriso de ironia. Seria ele o batedor. Ele, o carrasco. Simão, o
condenado. Com cinismo, ficou encarando Simão. Um pibe... e negro. Fez um "psiu" para Simão e apontou o dedo
para o canto esquerdo, prometendo chutar ali. Rindo. Danubio López perdera a
conta de quantos goleiros já haviam tremido na sua presença. Era um ídolo
nacional. O maior nome da seleção e em vias de se transferir para o Milan, pela
estratosférica soma de treze milhões de dólares. Fazia o último jogo defendendo
a camiseta roja e queria se despedir como
campeão.
Em outras circunstâncias, fosse Simão
um garoto classe média e urbano, até se assustaria. Simão não era. Criado no
subúrbio, no meio dos tiroteios da favela, desde os oito anos pingente de trens
da Central, conhecendo como conhecia as agruras da vida, não se assustaria com
aquele branquelo, metido a besta, com cara de tangueiro e cílios longos de
veado. Não seria isso que assustaria Simão. No fundo, no fundo, até começava a
gostar daquela bagunça. Já estivera, em outras situações da vida, em enroscos
piores. Era hora de mostrar "quem tinha mais garrafa vazia para
vender".
E foi encarando o sorriso de Danubio
que Simão cumpriu o seu ato. Calmamente, enquanto os dirigentes discutiam no
círculo central, foi lá no fundo da rede, desenrolou a toalha que trouxera e
pegou uma banana. Caturra.
Sentou-se
no chão, no pé da trave, encarando Danubio nos olhos, e começou a descascá-la,
vagarosamente, dizendo com um portunhol arrevesado para o Danubio atônito:
"És assim que jo voy comer su mujer... tirar su roupa. Hoy, después del
juego. Em mi hotel. Coñeço su mujer. Já pus mi pau muchas veces em sus coxas. E
eja já chupou muchas veces mi pau".
O inusitado da cena de um goleiro comendo
banana no limiar de um pênalti causou um rebuliço nos fotógrafos e periodistas postados atrás do gol. Sob o espocar dos
flashes, Simão descascava a banana, com o zelo que se tira a camisola da mulher
amada. Lambia a banana como se lambesse a perna da mulher de Danubio...
Não existe nenhuma menção no livro de
regras do futebol, a não ser que, por rigores, o juiz considere ato anti-desportivo,
a proibição de que o jogador coma alguma coisa durante o jogo. Se lhe é
permitido beber água e chupar gelo para matar a sede, é de se supor que seja
também permitido comer alguma coisa para matar a fome. Não é comum, mas também
não é impróprio. Além do mais, o jogo estava parado e o juiz e os bandeirinhas
conversavam no meio de campo com os dirigentes. Aliás, há mais de quinze
minutos.
Danubio, lívido, não acreditava no que
ouvia. Aquele fedelho, pobre, negro, desaforado e brasileiro, ofendia a sua
esposa e a si, na frente dos seus companheiros, dos jornalistas, debaixo dos
céus de sua pátria. E ainda fazendo com que ele servisse de chacota para os
outros jogadores brasileiros, agora se enchendo de razão e rindo das zombarias
daquele macaquito. Ele, logo ele,
Danubio López, "El Gran Capitáin", que o mundo inteiro reverenciava,
a maior glória esportiva de seu país. Ele, acostumado que era a ser chamado
"Dios" pelos compatriotas, que morreria ensangüentado se preciso
fosse, "defendiendo su
bandera"...
Como todo latino sensível e dramático,
a simples menção de que na testa lhe estufassem chifres passava a ser uma
questão de honra ferida. O sorriso cínico que portava antes desmanchava-se,
dando lugar a uma careta de ódio. Contido por Gualtieri, o número 7, ameaçou
partir para cima do moleque, que sorria um sorriso debochado de dentes muito
brancos. Danubio, arrastado para trás pelo companheiro, ainda conseguiu gritar
com a voz contaminada de raiva: "Te mato! Te mato!". Limpando os
dentes com a unha, Simão ainda diria, só que em português: "Se tu bobear, eu
te como também!" Os companheiros de Simão, insuflados pela coragem do
pivete, encheram-se de brios e descobriram um líder jovem, brotando de um campo
minado.
Se o juiz não tivesse apitado
anunciando o reinício do jogo, é provável que o pau tivesse comido ali, naquela
hora. O próprio Gualtieri, que segurara Danubio, chegou a fazer menção de
correr de encontro aos brasileiros soqueando e chutando, quando Peroba, o
lateral brasileiro, elogiou-lhe a bunda.
O árbitro veio correndo para a área,
conferindo a bola na marca e a posição de Simão debaixo das traves. Simão
calçou as luvas. Sentiu que tinha enervado Danubio, quando o viu aspirar o ar
antes de tomar a posição de batedor. Danubio estava vermelho de raiva, mas
também - via-se - tremia. O lábio superior franzido numa contração involuntária
do músculo. Simão encarando-o com um sorriso, bateu as mãos no peito,
provocando-o, dizendo baixinho: "Aqui! Chuta aqui, corno de mierda!"
Um silêncio de expectativa sobre o
estádio. Setenta mil pessoas emudeceram, como se alguém ou alguma coisa, com um
gesto, assim ordenasse. Emudeceram, guardando o grito para explodir tão logo o
pênalti fosse batido. Só se ouvia o barulho de fósforos e isqueiros acendendo
cigarros, salpicando as arquibancadas de estrelas fora de hora. O olho de Simão
encarando os olhos de Danubio, que não agüentaram o duelo, abaixando-se.
Os locutores já se preparavam para
esparramar, com fôlego de carretel, o grito de gol. Quem não estava no estádio,
encarquilhava-se de tensão frente aos aparelhos de tevê e rádio. Muitos já
comemoravam por conta. Danubio López nunca errava. O país com os olhos cravados
em Danubio.
O juiz apitou. Danubio correu para a
bola
Muitos espremeram os olhos. Muitos beliscaram-se.
Muitos trincaram os dentes.
O chute arrancou um naco de grama e
saiu mascado como uma tacada sem giz. A bola fraquinha foi borboleteando se
aninhar carinhosa no peito de Simão. Danubio perdeu o pênalti e sentiu o céu
desabando em sua cabeça. Abraçado pelos companheiros, Simão, de dezessete anos, disparou a gritar: "Eu
sou foda! Eu sou foda! Jo soy fueda!"
Um "Oh!" comprido e
caudaloso escorreu pelas arquibancadas como se houvessem sido abertas as
torneiras das expressões desesperadas. Danubio, transtornado pela frustração,
enfiou a cara na grama embarrada e passou a soquear a própria cabeça
enlouquecido, ciente, talvez, de que: "Milan, nunca más".
Arrastaram-no chorando para a beira do campo, sob uma tempestade de vaias. O
torcedor não perdoa. Já diziam os sábios que "dia de muito é véspera de
pouco". Uma máscara dolorida de abatimento estampada na face de cada um
daqueles que envergavam as camisas vermelhas. Um tango. Um tango doloroso,
dramático e cruel, seria a trilha sonora adequada para aquele momento.
Choravam.
O juiz olhou para uma lateral do
campo. Procurando Juan Pablo, o dirigente. Orientando-se. Temendo as
influências e ameaças do Jurandir na FIFA, o dirigente fez um sinal com a mão
que queria dizer: "Acaba logo essa merda!". Feito isto, explodiu a
garrafa plástica de água mineral no muro de concreto.
Antes, a bola devolvida por Simão fora isolada por um zagueiro tonto para
trás dos muros das churrascarias. Um silêncio fatal. Uma lufada de vento
assobiou uma música triste. Se não fosse exagero dir-se-ia que dava para ouvir
as mariposas mergulhando em vôo suicida contra as luzes dos holofotes.
O jogo acabaria em um minuto e doze
segundos, com os brasileiros retendo a bola e fazendo-a correr de pé em pé. Ouvia-se (isso é
certo) o barulho da bola roçando o gramado úmido, tamanho era o silêncio.
A
torcida, engasgada com a guerra perdida, engoliu o sapo rugoso da derrota
-conformando-se inacreditavelmente- abalada que fora pela inesperada defesa do
goleirinho negro. Podia-se ouvir também o tom lamentoso dos comentaristas de
rádio locais, como um que dizia sem esconder a voz embargada de soluços: “El
baile previsto com todas las letras y en mayúsculas se convertió en una milonga
sofrida. Parece um sueno... Danubio no fue Danubio. Fue apenas una palida
imagen del gran capitáin. Las personas sedientas de festejo... para las que
todo era un grito de orgullo nacional, quedaram-se atónitas ante el hecho irreversible. El gran
favorito se derrumbó. Quien tiene una respuesta para explicar esto? Quien
tiene? Um pibe, solamente um pibe como ningún de nosotros lo hubiese soñado,
fue la razon del suplicio de los rojos.... Es muy amarga la derrota... muy
amarga!”.
Os
brasileiros campeões na casa do inimigo. Jogavam Simão para cima, faziam festa
com o herói da partida, chamando-o de "Fodão". A taça reluzente
passava de mão em mão e os brasileiros cobriam-na de beijos. Simão sorrindo,
com seus dentes brancos de marfim, pensava no seu minuto de fama, sem saber que
acabava de inscrever naquela noite - da forma mais heróica possível - o seu
nome na história.
Importa
pouco o que foi feito de Simão... talvez devesse importar mais... mas ele foi
um entre tantos heróis dos estádios que passaram pela história com a rapidez de
um vento ou como uma efeméride radiosa de apenas uma só noite. No entanto,
enquanto essa história for contada, quantas vezes venha a ser contada, com mais
ou menos filigranas de exagero, lá estará Simão, desafiando Danubio, vencendo
Danubio, que é a sua forma de estar perene na história... mesmo que por uma
noite apenas... “una noche inolvidable”, como diriam os castelhanos. E essa
história que tomou o trajeto de lenda, poderia ser uma história comum, não
fosse o jogo ter sido entre quem foi, não fosse o improvável herói, não fosse o
inusitado da estratégia que um usou para bater o outro no duelo. Talvez tivesse
sido mais justo que a carreira vitoriosa de Simão continuasse, assim como
aquele vento daquela noite de agosto com sua voz que imitava o desespero das
almas. Vento que continuou aquela noite, madrugada adentro, mesmo depois que
apagaram-se os refletores, a grama deitada pelo barro das chuteiras levantou-se
recuperada com o sereno da madrugada, as chaminés das churrascarias sopraram
seu último hálito de fumaça e as vozes das torcidas foram se apagando à medida
que cada um se recolhia. De certo modo a grama amassada, a fumaça que vagou
tonta no céu soprada pelo vento de agosto e cada soluço daqueles que se
entristeceram com o resultado, foram figurantes daquela passagem da história,
de um jogo de bola, do momento fatal da cobrança de um pênalti... da noite
gloriosa de Simão.