domingo, 18 de outubro de 2015

CRÔNICA DO SABONETE DORLY E DO TALCO EUCALOL

Ninguém se lembra, certamente, do perfume do sabonete DORLY. Esta marca de sabonete foi no final dos anos 50, a única marca usada em minha casa. Meu pai comprava caixas e caixas. Não sei por quê! Essa mania do meu pai fez com que eu arquivasse na memória este cheiro que nunca mais senti, mas que lembro com exatidão por um desses mistérios da mente. Lavar o rosto de manhã, as mãos antes das refeições o banho da tarde, práticas diárias. Revejo agora no Google, a imagem que ilustrará este texto. Aproveito pra fazer o desafio: quem mais conhecia essa marca de sabonete?
Minha vida, já escrevi várias vezes, é regida pela memória dos cheiros. Nem sempre cheiros bons como o de Dorly, floral, com uma pitada de canela, se é que consigo descrevê-lo.
Sempre achei que os perfumes se acentuavam nos domingos, principalmente na minha casa. A missa da manhã, das sete, era obrigatória. Eu, criança obedecia, por que isso faz parte do protocolo infantil, Meus irmãos adolescentes e já rapazinhos, não tinha opção mesmo e nem era por causa de alguma espécie de protocolo. Obedeciam e iam à primeira missa da manhã, mesmo que os bailinhos de sábado houvessem lhes roubado a disposição de acordar tão cedo. Mas eles eram jovens, tinham energia e tinham bicicletas, bicicletas GORICKE com o cheiro de graxa das engrenagens. Não precisavam fazer o trajeto da Vila da Usina à igreja a pé. Eles cheiravam também à Brilhantina GLOSTORA que passavam generosamente nos cabelos para fixar os topetes, pensando talvez, em prováveis olhares femininos à saída da igreja. Virtuosos, nas bicicletas, se exibiam... Meu pai cheirava à uma loção de barba amadeirada e minha mãe à pó de arroz. Aliás, fins de semana, a casa tinha vários cheiros: cheiro de PARQUETINA, a cera que lustrava os assoalhos no sábado, cheiro de ANTISARDINA que minhas irmãs usavam, possivelmente contra sardas, cheiro da revista O CRUZEIRO, com sua tinta gráfica marrom e forte. Quem lembra? E eu ia á missa com cheiro de Dorly, ainda do banho de tarde anterior. Sabia que na volta da missa, um lauto café da manhã, com cheiros variados nos esperava. Só não entendia porque eu também esperava o depois da missa se ainda não comungava? Jejum desnecessário...
Lembro ainda de Tereza Cristina, uma paixão precoce, que cheirava a talco EUCALOL. Por que me lembro? Por um desses motivos que um homem não esquece: a primeira namorada. Eu tinha oito anos e já sentia o coração bater incontrolado quando a via. Éramos vizinhos e eu passava horas no portão, só pra vê-la na casa em frente. Não nos falávamos quase, porque meninos e meninas, pouco se falavam. Acontece, que numa noite de quinta-feira, houve o aniversário de Glaucia (outra menina) e todos as crianças da Vila da Usina foram convidados. Entre brincadeiras, também se brincou de namorar. Acho que pela primeira vez peguei na mão de uma menina de modo a acelerar meu coração... Brincar de namorar era assim, desse jeito combinamos, os meninos e as meninas, naquela noite. “Namorei” umas quatro desse modo. No final, audacioso (sim, eu era!) propus-lhe que namorássemos também no domingo de manhã, no campinho de futebol. Ela disse que sim, meu coração disparou e mal pude esperar aquele domingo depois da missa.

Querem saber os cheiros do dia, além daquele do protocolo da missa? O vento tinha um hálito melífluo das Acácias-mimosas em início de primavera. Meu sapato, exageradamente engraxado reacendia cheiros de pasta NUGGET e meu cabelo engomado pelo exagero de Glostora não se abalava com o vento. Ela veio ao encontro comendo bolo, bolo de chocolate, com cheiro de TODDY e me ofereceu um pedaço. Me deu a mão (sim, a iniciativa foi dela!) e ficamos um longo tempo em total silêncio, de mãos dadas, até que a proximidade do almoço nos separou. Simples assim. Apenas isso. Lembro que combinamos “namorar” outras vezes, mas não aconteceu. Nunca mais falamos sobre aquilo. Crescemos e, ironicamente, nunca fomos amigos, mesmo que nunca tenhamos brigado. A vida simplesmente empurrou cada um de nós para um canto diferente e ficou em mim apenas a lembrança do seu perfume Eucalol, daquela manhã de domingo, que a memória teima em trazer de volta, sempre que um ruído de primavera espalha no ar o cheiro melífluo das acácias. Lembrar é bom!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015





LUZES DA NOITE
Conto do meu primeiro livro: "Os comedores de vidro"

         Não me cabia, ou a qualquer outra pessoa que vivenciasse aquele instante, saber quais eram as forças propulsoras daquela mão invisível que distribuía as cores nos pedaços picados e brilhantes das fotos que se esparramaram flutuantes no vento. Do mesmo modo que até hoje ninguém descobriu quem organiza o colorido de cinema das bolhas de sabão.
          Rápidas e cambiantes, as cores refletidas nos pedacinhos de papel pareciam disputar com o prateado da chuva a missão de substituir as estrelas, que nessa noite não vieram. Em câmara lenta... escorriam ondulantes, como uma cascata iluminada e bailarina, jorro brilhante-cauda de cometa.
           Da janela do meu quarto eu sorri. Primeiro pela ousadia do meu gesto, segundo por que eu era poeta...
Tudo havia começado no bar. Naquela noite que era de chuva e frio. À meia-noite e vinte, quando mirei o mostrador do relógio e busquei na consciência a autorização para tentar de novo. À minha frente os óculos do garçom refletiram as cores misturadas de todas as roupas, todas as garrafas, todos os brilhos dos copos... como se duplicassem um arco-íris desorganizado.
Mirei também o ventilador do teto que liquidificava, lento e rouco, as vozes do bar. Liquidificava ainda, em espirais contínuas, a fumaça de muitos cigarros, as cores... Madrugada fria! A porta aberta, sugando os passantes perdidos da noite, fugitivos dos bares já fechados. Eu já havia abandonado a mesa dos amigos, trombado nos que entravam, e tentava, mais uma vez, no telefone do balcão, outra ligação para Tereza. O irritante e contínuo sinal de ocupado, do outro lado da linha, me desanimava. Com quem falaria Tereza àquela hora? Estaria o aparelho fora do gancho? Deveria tentar de novo? Poderia (se fosse decidido) acreditar na hipótese viável de estar o outro aparelho desligado. Seria não sofrer. Ciumento e inseguro, arrepiei-me com a possibilidade de outro estar ouvindo aquela voz, que até ontem era minha. No bar enfumaçado, na madrugada fria, outras vozes, por vezes, confundiam-me. Lembravam-me, por defeito de sintonia e mixagem imperfeita, a voz de Tereza – mascarada nos gritos e sussurros. Passou em minhas lembranças uma sucessão de imagens da mulher na qual eu pensava, como um filme curto e sem enredo: preto e branco.
Olhei com desinteresse a fauna eclética do bar: homens de terno que perdiam a sisudez, afrouxando as gravatas à medida que a noite os transformava. Homens gordos e magros. Mulheres pintadas e despintadas à medida que muitos abraços lhes derretiam as pinturas. Mulheres magras e gordas. Gorduras éticas e não-éticas. Magrezas incômodas. Homens e mulheres contaminados pela química do bar...
Pensei em um campo verde. Vi-me correndo com um cachorro amigo, numa tarde de sol.
Ameacei, com o dedo no disco, ligar outra vez. Desisti com o barulho de uma taça quebrando. Suspirei como se estertorasse, com um fiapo mínimo de ar limpo que bailou à minha frente.
Se desistisse de tudo e fosse embora, perderia a chance de tirar a dúvida. Sepultaria a chance – quase nenhuma – de reconciliação. Já eram demasiadamente difíceis as coisas em minha vida, para assumir gestos de poucas possibilidades. Não ousei gastar – por temer consequências – as últimas fichas de sobrevivência daquele caso de amor. Tentaria sim, mas com a certeza do passo dado, o perdão da namorada. Precisava disso. Questão de sobrevida. Assustava-me (consciência de quem sabe com quem lida) a quase inviabilidade de minha esperança.
Estava ali no bar, desde o começo da noite, quando tentei a primeira ligação e não encontrei a voz que queria ouvir. Deixara na secretária eletrônica o recado para que Tereza fosse ao meu encontro. Detestei – porque me inibia e me deixava sem espontaneidade – falar com uma máquina, mesmo que contivesse a voz de Tereza. Unilateral. Lembrei-me, no entanto – porque, desde o dia anterior, dera para recordar – que havia sido através da secretária a marcação do meu primeiro encontro com Tereza, há dois anos. Teria sido preferível, no entanto, hoje no instante da ligação, falar com uma voz que me respondesse. Se pelo menos houvesse um fio de esperança, tênue que fosse, para me agarrar! Queria acreditar os ânimos houvessem serenado depois da pesada noite anterior. Pensei com tristeza e desprazer na Tereza incontida, improperante e nervosa do último encontro. Teria se acalmado? Teria ouvido o meu recado? Tentei me convencer de que ela não atendera o recado por estar no banho, por ter ido às compras no supermercado noturno, ter ido à portaria buscar correspondências do dia ou ter ido simplesmente à Lúcia, sua vizinha, buscar emprestada uma xícara de açúcar. Por que não retornara o meu chamado?
Eu não tivera um bom dia. Haviam vencido duplicatas minhas no banco, e enfrentava a dura pressão do gerente. O dinheiro que eu tinha pouco e difícil de ser esticado até o fim do mês. Tudo me abalava, inclusive a gastrite renitente me queimando por dentro. Meu pigarro, de muitos cigarros, transparecia num refluxo azedo, que me piorava o hálito. Além de tudo eu engordava. Minha barriga dificultava amarrar os sapatos e até um gesto prosaico, como cortar as unhas dos pés...
Talvez (pensei) fosse prudente ir para casa. Não precipitar as coisas. Precisava me dar um tempo, afugentar a depressão, e talvez Tereza precisasse de mais um dia. Talvez fosse conveniente deixar-me abraçar pela noite: no bar, ou na proteção ventral do apartamento. A última era a melhor das alternativas. Aquecer-me-ia, poderia pensar serenamente, corrigir-me ou ocupar-me de planejar o reencontro. Talvez assim os rumos da minha vida se reorientassem. Senti um leve aliviar da tensão.
Tomei ali mesmo, no balcão, uma última dose: saideira para enfrentar a umidade das ruas. A bebida, no copo de cristal, olhada contra a luz, espalhou estilhaços de cor na minha alma.
Se Tereza tivesse vindo, se tivesse aportado ali do meu lado, não importando de onde estivesse vindo, não estaria me sentindo tão derrotado. Tereza me faria esquecer todo o resto. Tereza era algo concreto. Minha vida? Corrigível porque as manhãs, teimosas, insistem em trazer um novo dia, por pior que tenham sido as noites passadas. Infelizmente, no entanto, Tereza não viera, não respondera ao meu apelo.
Decidi então deixar os amigos e ir embora. Recolher-me na espera de que a noite varresse os meus medos e uma nova manhã me iluminasse com alguma chance. Deixei com os amigos um recado (sem esperança) na eventualidade de Tereza aparecer. Constatei, enquanto atravessava o labirinto das mesas, que não me fariam falta os amigos do bar. Nem naquela noite, nem em nenhuma outra noite da minha vida. Três amigos dispersivos, que, principalmente naquela noite, só haviam me irritado. Colaborado para aumentar a minha tensão. Santiago, com seu hábito dissimulado de abraçar todas as mulheres; Isabel, com sua risada gorda e masculina: Ismael com sua mania estranha de bochechar o vinho. Irritantes!
Paguei minha parte na despesa e saí para o frio das ruas. Atravessei a calçada entre putas e bêbados, buscando a pé, por causa do pouco dinheiro e porque era perto, a rua do meu prédio, Nesse trajeto pulei várias poças d’água que refletiam neons. Não sabia que tornaria a ver, ainda naquela noite, outros reflexos coloridos.
Subi a escada ouvindo o rangido estertorado da madeira, choros de criança e gatas no cio. Prometi-me um banho quente, café forte e não beber mais aquela noite.
O café, forte e quente, reacendeu a minha alma. O banho me fez vigilante. Aconcheguei-me no calor de minha casa e olhei a janela, postando-me como um voyeur olhando a vida pública: cenário dos desesperados da noite. Minha rua era a página policial de um jornal ao vivo. Antro de bêbados, excluídos, prostitutas, drogados, travestis e toda essa fauna de deserdados. Olhava-os com os olhos neutros de um protegido. Talvez (pensei com a frieza de um pesquisador) alguns daqueles
seres pudesse ocasionar no decorrer da noite um assunto para um conto. Acostumara-me a escrever, sempre que estava tenso. Ajudava-me a enganar pensamentos.
A chuva – cíclica – voltou de novo com uma pancada forte e transbordou bueiros. Um ônibus passou rangendo lonas de freio e abrindo as águas, como Moisés e seu cajado. As cores refletidas na água misturaram-se numa coreografia rápida, balé enlouquecido, e depois acomodaram-se de novo, como se a corda que movimentou aquela água estivesse no fim.
Embaralhei os pensamentos, pensei na chuva, imaginei que o céu chorava e não consegui despregar Tereza de minha alma. Poderia ter chorado como o céu, mas não chorei. Ao contrário, vasculhei todo o trecho do quarteirão alcançável pela minha vista: com frieza. Debaixo da marquise da agência lotérica, um homem e uma mulher embaraçavam braços e pernas; na porta da farmácia, três mendigos disputavam uma garrafa e se aqueciam com uma rala fogueira de papéis; no parapeito da imobiliária, dois grafiteiros molhados de chuva escreviam textos incompreensíveis.
A rua era um mosaico de fatos e ocorrências. Temas para muitos contos. Bastaria, se fosse o caso, costura-los como se costura uma colcha, ou simplesmente selecionar, garimpando entre tantos fatos os possíveis detonadores de uma história. Fosse eu um escritor permanente e contumaz, teria essas prerrogativas: inventar, reinventar, aumentar e transformar banalidades. Poderia, por exemplo, pegar o casal que enredava corpos e pernas e transformar a mulher num travesti. Pensei com ironia - porque nos últimos dias dera para inventar formas de vingança – que o “traveco” poderia ser um gerente de banco correto e formal que a noite transformava. Pensei em Raimundo Neves, que me pressionava com duplicadas vencidas e por meu saldo estourado. Tão formal e limpo o Raimundo Neves! Imaginei-o à noite botando a peruca loura, passando-se batom e rouge e transformando-se num simulacro de mulher. Verônica Blando – seria um bom nome. Odnumiar Seven poderia ser o outro nome da personalidade dupla, o nome do lado masculino. Sorri, acho que pela primeira vez nesta noite.
Poderia também transformar os três mendigos da farmácia. Quem sabe fazê-los desafortunados, que foram um dia pessoas economicamente viáveis, que por um desses azares incontidos da vida, um dia ficaram pobres. Pensei em dois homens e uma mulher, porque, da distância que os via, eram inidentificáveis. Seria também uma vingança contra Santiago, Isabel e Ismael, os companheiros do bar. Dois homens, uma mulher e uma garrafa de cachaça. Três seres a lembrar noites quentes de conforto, tiritando agora de frio, numa calçada de uma rua qualquer. Dois machos animalizados pela bebida que duelariam até a morte, por aquela mulher como se ela fosse a última mulher do mundo...
Pensei em vingar-me também de Tereza. À medida que a noite me acomodava os pensamentos, comecei a construir uma raiva vagarosa de Tereza. Mal sabia que aquela raiva estava se fermentando há muito, aos poucos, imperceptível, crescendo lenta e estufando como um bolo em minha alma. Mal sabia eu do tênue fio que separa as duas distâncias. Detestei-me, por haver deixado que ela me humilhasse tanto. Odiei-me por ter me deixado dominar, tanto tempo, por Tereza. Começara, ali mesmo na janela, quase sem perceber, a alimentar o sonho de desprender-me daquela mulher que me fizera tanto mal. Pensei nos grafiteiros e os imaginei escrevendo frases pornográficas com o nome de Tereza. Retomei a intenção do conto e descobri que aquela era uma terceira idéia. Pensei numa personagem aparentemente pura, católica e recatada, com o mesmo nome: Tereza. Mulher que um dia caía na boca do povo. Por culpa de grafiteiros, terroristas da noite que denunciavam sua vida dupla. Pensei em uma cidade acordando e em uma pecadora desvendada. Tereza, Tereza, Tereza... pecadora! Insisti comigo mesmo, espanando o nome, varrendo-o e carregando-o para o lixo, para um arquivo morto – dando baixa. Eram três motes a serem desenvolvidos. Qual deles poderia escolher?
Agora já não tinha mais pressa. Não precisava mais recompensar-me por ter perdido Tereza, nem de autocompadecimento. Ri de novo, percebendo que, sem nenhum esforço, e surpreendentemente sem sofrer, ela começava a ser desfocada de minhas lembranças. Até duas horas atrás, nem me passava pela cabeça que isso pudesse ser possível. Percebi-me com uma capacidade de reconstrução que desconhecia. Talvez as mágoas tivessem transbordado... como os bueiros que alagaram a rua. Senti-me reanimado. Fizera-me bem o café forte. Senti-me seguro para evitar um novo cigarro e expeli flatulências, num ato rebelde que denunciava liberdade.
Limpei a vidraça, olhei mais uma vez o casal, os três mendigos e os grafiteiros, decidido a esquecer Raimundo Neves, Ismael, Isabel, Santiago e, principalmente, Tereza. Poderia até adiar o conto.
Busquei na estante a caixa de sapatos com vinte e nove fotos de Tereza. Repassei, uma a uma, cada foto, olhando sem emoção. Comecei a rasgá-las em pedacinhos minúsculos. Descobri-me sentindo prazer naquele gesto. Senti-me como que exorcizando um encosto: com alívio. Pedacinhos de mais ou menos meio centímetro, calculados com frieza. Com frieza calculei que, somados, aqueles pedacinhos dariam mais ou menos nove mil... dez mil e poucos. Rasgando as fotos, matava Tereza – simbolicamente. Desejei ardentemente, por vingança, que Tereza estivesse, nesse exato momento, descobrindo que me amava. Senti que teria imenso prazer em recusá-la e vê-la sofrer por minha causa. Queria que ela viesse me pedir perdão, que pelo amor de Deus eu a perdoasse, só para ter o prazer de negar e vê-la chorando. Adorei-me por saber que não teria remorsos.
Gastei o razoável naco de tempo que se leva para rasgar vinte e nove fotos, tamanho postal, em dez mil e poucos pedaços. Enquanto isso, pensei. Pensei no amanhecer, que já se aventurava detrás das colinas e para o qual deveriam faltar umas duas horas. Na minúscula fração de tempo que dura um piscar de olhos, tomei uma das decisões mais corajosas da minha vida: fechar o apartamento, juntar o mínimo necessário, tomar o primeiro ônibus da manhã, que fosse para bem longe, para o interior. Arranjaria emprego em um colégio, porque sabia, seria um excelente professor de português. Ganharia pouco, mas estaria longe da pressão da cidade grande. Poderia voltar a escrever, sem pressa, como gostava, longe dos momentos tensos, apenas por prazer, não mais como remédio. Com dignidade. Poderia, quem sabe, encontrar uma moça sem neuroses, casar-me, ter filhos, sogro, sogra, sobrinhos, macarronada aos domingos, um cachorro e uma bicicleta. Seria reconstruir a minha vida. Para muito melhor!
Embaralhei minuciosamente os caquinhos dos retratos, tornando impossível – quebra-cabeça imponderável – reconstituí-los.
Pensei em queimá-los, mas preferi brincar de neve... ou confete. Abri a janela e o vento assoviou como os desejasse. Despejei-os na noite. Misturaram-se, mais ainda, enredemoinhados... gangorrando...

Com o coração destampado de alívio, olhando a cascata iluminada bailando na chuva, assobiei baixinho o "Danúbio Azul". E o fiz melhor, muito melhor, do que a Orquestra de Viena, em suas melhores performances. Gorjeei como um pássaro acompanhando o balé. Voltei os olhos para o pedaço de céu atrás dos prédios e adivinhei um sol gigante, redondo e flamante que vinha empurrando a noite, brigando com a chuva e descerrando as cortinas de um novo dia.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A PAIXÃO DE ROSÁRIO

                                                                          
Um conto de "Ouvido absoluto", meu novo livro que sairá em breve





 A PAIXÃO DE ROSÁRIO



  
Rosário tinha uma paixão. Paixão escondida. Nicanor da farmácia.
Quantas vezes, quantos sonhos..., acordando incendiada de desejos... e de pecados! Palpitações bombeando o peito, gambiarras de luzes estalando estrelas tontas no cérebro, coração acelerado, respiração sôfrega. Quantas vezes?
         Nicanor... Nicanor! Comparava-o com JK, em uma foto de cabeceira, destacada de uma revista: JK, o presidente, na varanda do Catetinho. Pareciam gêmeos, pensou enquanto acarinhava os bicos dos seios por cima do vestido. Suspirava profundamente, cada vez que fazia isso.
          Amava-o de longe, com toda a dor que representa amar amordaçada por uma distância difícil..., por não tê-lo para si, nas noites frias que passava sozinha, por não tê-lo para si, para botar-lhe a mesa, botar-se para ele na cama macia de chenille azul, afagar-lhe os cabelos, esperá-lo com os chinelos, com o jornal, com o que ele quisesse.
         Rosário tinha trinta e nove anos e nunca experimentara um homem. Nunca tivera na vida um beijo que lhe afogueasse a alma. Beijo na boca. Beijo de língua. Só imaginava. Imaginava com a restrição que o pensamento constrói. Teoria sem prática. Suposições. Apenas.
         Abraços, só do falecido pai e do primo José Antônio. Do pai um cheiro de loção guardado na lembrança. Do primo, o perfume oleoso da brilhantina Glostora. Rosário sabia que abraço de parente não incendiava. Era formal, contido, respeitoso. Não tinha a fagulha que eclode em fogo destravando os freios do coração indomado. Não tinha.
Rosário morava só. Vivia da aposentadoria que lhe deixara o velho pai. Ela e Bichano, um gato brasino, única companhia de sua vida de solteira. Único que a ouvia, paciente e ronronante, falar de Nicanor, sem nunca virar o disco.
         Todos os dias, de segunda a sábado, corria à janela quatro vezes por dia para ver Nicanor passar. Disfarçada, atrás da cortina. Quinze para as oito, meio dia, uma e meia e sete da noite. Religiosamente. Metódico, Nicanor e seus horários da farmácia.
         Rosário só suportava os domingos porque podia vê-lo na missa. Missa das sete. O resto do dia, sem ver Nicanor. Rosário sabia tristes os domingos. Iguais quase todos. Ao meio dia, cheiro de lasanha saindo das casas como se todos comessem lasanha. Todas as mulheres, seus homens e seus filhos. À tarde, os rádios transmitiam futebol e as mulheres faziam café para seus homens. À noite, outra missa, às seis, e depois as famílias ao pé do rádio ouvindo “Parada de Sucessos Tonelux” e o “Grande Teatro Lever”. As mulheres com os seus maridos. Rosário só com o gato. Sozinha. Rosário odiava os domingos, por só ver Nicanor na missa. Depois, o resto do dia sem vê-lo. Suspirando... suspirando.
         Rosário sabia tudo de Nicanor. Solteiro, quarenta anos, viva sozinho com a mãe. Não se casara, mas é quase certo que muitas o desejaram. Talvez ele estivesse se guardando para ela. Quando Rosário arriscava-se a sair e passar em frente à casa dele nos domingos, via-o na varanda, de camiseta de física, molhando as plantas e cortando as unhas. Às vezes ele a cumprimentava com um meneio de cabeça e às vezes ele dizia “Boa tarde, Dona Rosário”. Rosário sabia que ele era metódico. Amava-o assim mesmo e sonhava com ele etiquetando a sua vida, todos os dias... até o fim. Afora a missa, ele nunca saía de casa aos domingos. Era dos poucos homens que não ouviam futebol às quatro da tarde. Era raro vê-lo fora de casa. Muito raro. Casa, farmácia, casa. Uma vez Rosário viu-o sair em direção à casa das mulheres e voltar apressado enxugando o suor do pescoço com um lenço. Aprendeu que esse era o seu programa de toda última sexta-feira do mês. Metódico. Nessas sextas, Rosário passou a evitar abrir as janelas.
         Afora os “bons dias”, “boas tardes”, falara com ele duas ou três vezes. Mais? Não tivera coragem. Uma vez quando foi comprar Cibalena na farmácia, outra quando assistiram, quase juntos, ao desfile de sete de setembro, e ele disse apontando os meninos do Colégio Machado de Assis: “No meu tempo não tínhamos fanfarra”. Outra vez foi nas eleições, quando ele, mesário, fora gentil segurando sua sombrinha enquanto ela votava. Falou alguma coisa do tempo e como a cidade ficava suja com as propagandas das campanhas. Três vezes. Três vezes inesquecíveis, e a memória de Rosário gravara o som da voz, a entonação da voz, cada simples sílaba proferida, e repetia no pensamento, repassando, feliz, a lembrança, como se aquilo fosse mais importante do que tudo.
         Houve raivas nesse tempo de paixão. Cinco ou seis vezes indo à farmácia pra comprar um remédio inventado e sendo atendida por Maria Dalva, a moça que trabalhava com ele. Nesses dias Nicanor manipulava receitas atrás da estante ou aplicava injeções. Vontade de gritar: “Quero que o Nicanor me atenda! Quero que o Nicanor me atenda!”. Mas Maria Dalva, mocinha enjoada, chamando-a de dona, de senhora, cheia de salamaleques...
         Pior era no confessionário. Padre Nelson perguntando pecados, e Rosário tendo de contar dos sonhos molhados. Padre Nelson querendo saber quem era o homem, e ela mentindo (mentir é pecado!) que era homem inventado, da imaginação, parecido com Tyrone Power ou Errol Flynn. Ato de contrição e dez ou doze ave-marias rezadas depois do confessionário, com a sensação de culpa grudada na alma, sem ter como resolver: “Eu, pecadora, me confesso a Deus, todo poderoso... quero trepar com Nicanor!... perdão, meu Deus... perdão...”. A hóstia da comunhão confrangida, queimando o céu da boca, embolando na garganta, o pão ázimo dissolvendo-se na saliva... medo de morder o “corpo de Cristo”, pensamento rezando baixinho: “me salva, Senhor, me perdoa, Senhor, sou uma pecadora apaixonada... preciso de um homem, preciso de Nicanor..., me salva, Nicanor, me abraça, Nicanor...”.
         Diz-se que o tempo é um rio caudaloso que se arrasta destruindo tudo à sua volta. O rio do tempo, traiçoeiro, pegou Rosário. Um dia ela se deu conta de que passara três anos à janela. O ano de 1958 vivia seus estertores. E é feitio do tempo desesperançar os ansiosos. Rosário começou a sentir essa desesperança quando fez quarenta e dois anos num dia cinzento de dezembro. Num domingo, com cheiro de lasanha no ar e muitos gritos de gol expelidos pelos rádios. Deu-se conta quando a paixão virou dor no seu peito.
         E foi ficando triste, ensimesmada. O coração, inchado por aquela paixão doentia, fermentava a dolorosa impossibilidade do prêmio amoroso. Se já não era de muito falar, menos agora falava então, com as poucas pessoas com as quais ainda se dava: o primo José Antônio, Cidinha, amiga solteira como ela, e Maria do Carmo, colega da congregação das Filhas de Maria.
         E também parou de comer. Emagrecia a olhos vistos. José Antônio, Cidinha e Maria do Carmo, preocupados. Começou a enfraquecer e ter olhinhos fundos com um ar de tristeza tatuado no olhar. Precisava de vitamina. Injeção. Na farmácia, a solução. Levada carregada de tão fraquinha... recomendando com um fiozinho de voz: “Quero que o Nicanor me aplique!”.
E assim foi feito. Nas nádegas, porque o braço estava magrinho.
Difícil descrever essas emoções particulares que serpenteiam viajantes pelo corpo, nesses instantes em que algo parece carregar de novo as baterias fraquinhas. É uma luz se acendendo no escuro. É um arrepio na espinha acordando sensações. É uma voz milagrosa dizendo no ouvido: “Levanta-te e anda”. O toque! Talvez seja melhor explicar esses sentimentos pela ótica de um toque que acende corpo e coração. Nicanor, metódico, profissional..., mas também atencioso. Nem doeu a injeção. Oleosa, era para doer. Mas havia a magia anestesiante do toque do amado, a mão de pele lisa... faísca elétrica fagulhando a alma. Sem forças ainda, mas num sobre-esforço esboçando um sorriso, Rosário agradeceu com os olhos. E foram mais duas injeções. Dois dias felizes. Nicanor tão perto que dava para sentir o cheiro da loção de barba: “Madeira do Oriente”, a mesma marca que o pai usava. O melhor de tudo era a mão macia tocando o glúteo, para separar o músculo do osso, colocando depois o algodãozinho e esperando o pontinho de sangue estancar. Tão carinhoso!
Cumprido o tratamento e com a atenção das amigas, Rosário recuperou até a cor. Precisava comer. Disso se encarregaria Cidinha, seguindo recomendações de Nicanor – quase médico. Polenta, caldo de carne, espinafre e feijão. Vitaminas.
Duas semanas, dieta com método e Rosário reacendendo a luz da saúde. Só que, se melhorasse, Nicanor se afastaria de novo, conjecturou tristemente. Duas semanas era tempo longo demais e as lembranças boas começavam a se apagar. Rosário precisava ver Nicanor, de perto. Não lhe bastava a janela.
Cidinha trouxe a janta. Rosário agradeceu sorrindo, prometendo comer depois da novela da Rádio Nacional. A amiga confiou.
Enquanto Cidinha virava as costas, batia a porta e descia as escadas, Rosário fez cálculos. Chamou então Bichano e ofereceu-lhe – quentinha – a polenta com caldo de carne. Bichano deu voltas de felicidade em torno do prato, ronronou, comeu tudo e lambeu-se todo, depois deitou no sofá para fazer a digestão. Rosário olhou o calendário. Cinco a seis dias sem comer e seriam necessárias novas injeções. Um arrepio de prazer e felicidade lhe queimou o peito.

Ah, Nicanor... Nicanor!

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

CRÔNICAS DE MATOZINHOS I





A Menina de Capim Branco


Poderia ter sido um sonho, uma efeméride de primavera... mas não foi! Meu coração é muito sensível para esse tipo de registro e por isso o fato ficou marcado. Ficou a cicatriz suave que o corpo moldou, absorveu e guardou, protegidinha, no fundo do coração. O nome dela, da menina de Capim Branco, não sei... não tenho certeza. O que sei, é que ela passou um dia pela minha vida, rápida como um vento de agosto, com um perfume típico da estação do ano e assim como um cheiro de “Dama da noite” na madrugada, compungido pelo vento, desapareceu.
Saudade é uma coisa danada que quando pega a gente de jeito, faz chorar. E ando muito sentimental nos últimos tempos. Ando... “à flor da pele...” como diz Zeca Baleiro em sua música famosa. Não choro com beijo de novela porque não vejo novela, mas choro muito (e é um choro bom de lavar a alma!), com música.
Quando vim para o Rio Grande do Sul trouxe um disco muito bonito do Madrigal Renascentista cantando musicas de serestas de Minas. Consegui agora, recuperar no youtube algumas delas e agradeço à tecnologia que me deu esse presente, posto que o disco se perdeu – arranhado -, com o tempo.. Penso nesse tipo de música, serestas mineiras, que tocava no serviço de som daquela noite. Memória é fogo! Lembro do fato, com a trilha sonora adequada e faz mais de cinqüenta anos, que tudo se passou. Talvez tenha sido a primeira vez que ouvi, “Elvira escuta” e “É a ti, flor do céu”, embora na minha casa se ouvisse rádio todo. Conheço porque a memória moldou, todos os sucessos da “era do rádio”, por exemplo. Ouvindo uma noite, essas músicas mineiras, abri uma porta que estava trancada fazia muito tempo. Associação sensível, se é que me entendem...
Se querem saber onde o fato se deu, o meu encontro com a menina, digo que foi na Usina de açúcar onde eu morava. Eu tinha oito ou nove anos. ela era uns dois anos mais velha, eu suponho... e foi nas barraquinhas, montadas para arrecadar dinheiro para construção da capela da Usina. Uma festa para as crianças! Barraquinhas com joguinhos, algodão doce, garapa de cana, pipoca... e tudo ali, na porta da nossa casa. Perfeito para que nossas mães não se preocupassem. Aliás, na Usina, todos os mais velhos cuidavam das crianças como se fôssemos todos, uma grande família. E havia ainda o apoio pra a festa, vindo “lá de cima, da praça Bom Jesus”, como Manezinho Dunstan, no serviço de som e, Bernardo, cantando a víspora, por exemplo. Muita animação. Não só para as crianças. Muitos adultos também, porque naquela época qualquer coisa era motivo de festa para Matozinhos. Muita gente nas barraquinhas!
Na barraquinha dos coelhinhos, o comando era de Geraldo Junqueira, amigo do meu pai. E foi ali, que conheci a menina. Jogávamos irrisórios centavos e ganhávamos uma maçã a cada vez que acertávamos a casinha, de 1 a 10, em que o coelhinho entrava. Ganhei muitas maçãs nessa noite e a menina também. Conversávamos como duas crianças dividindo um brinquedo e lembro que ela tinha um sorriso lindo e um perfume gostoso. Ela talvez não pensasse nisso, mas eu já começava a “pensar com os hormônios”, só que eu não sabia. Sentia um frio na barriga e o coração aos saltos. Eu só queria que o tempo não passasse e que ficássemos ali, eternizados naquela parceria amiga e agradável.
Não me perdôo por não ter descoberto o nome dela. Fico triste com o azar de tê-la visto somente uma vez. Mas, cabeça de menino, sabem como é, ainda não tem a disciplina adulta que o jogo amoroso exige. Passou. Talvez eu pensasse que poderia encontrá-la de novo. Sei que meu pai era amigo dos pais dela. Vi que conversavam animadamente. A mãe dela sabia até meu nome: “Dá tchau pra Betinho, (?)! Acho que é alguma coisa parecida com “Nina”... talvez. Foi algo parecido com isso, o apelido com que a chamaram. Ela me deu tchau com um movimento de mão e um sorriso lindo e, nunca mais a vi. Foi uma das minhas primeiras paixões!
Uma vez, já adulto, lembrei do fato e tentei encontrá-la. Perguntei pra meu pai, mas ele não se lembrava do fato e nem e quem eram as pessoas com que ele conversara naquela festa. “Tenho muitos amigos em Capim Branco”, disse ele.
Tentei uma vez no carnaval e fui no Pingo de Ouro e no Salvador. Ela não estava. Eu a reconheceria com certeza! Perdi-a no tempo. Lamentável! Ficou na gaveta do coração. Às vezes eu abro e lembro com saudades.
“ É a  ti, flor do céu, que me refiro..., canta o Madrigal Renascentista.
Escorre-me uma lágrima. Saudades da infância, da pureza e da inocência. Saudades do meu primeiro amor.


sábado, 3 de maio de 2014

Simão

Adianto um conto de meu livro futuro, por causa do episódio com o jogador brasileiro Daniel Alves. Só que este conto foi escrito em 2009 e nem se imaginava que um brasileiro responderia tão bem, e á provocação de um insulto racista.                            


SIMÃO
                                                         Geraldo Roberto da Silva 
                                                           
          
Muito já foi dito sobre os medos e ansiedades de um goleiro na hora do pênalti. Simão tinha tudo para estar vivendo essas sensações, no momento fatal dos descontos do segundo tempo, no "Coloso de la Herradura" lotado. À sua frente, Danubio López, o matador. Entre os dois, a bola de gomos brancos e negros. Atrás e nas laterais, uma massa ensandecida pronta para soltar o berro da vitória, no momento em que a rede se estufasse pela ação do chute sem misericórdia que viria tão logo o juiz apitasse. Atrás de Danubio, os jogadores de vermelho prontos para um eventual rebote ofensivo e os de azul, dispostos a espanar para longe o mesmo rebote. Todos com os corações aos saltos... Atrás desses, o gramado verde, estendido como uma infindável e grave passarela vazia, o grande muro de anúncios na parte frontal da ferradura e as luzes dos refletores brilhando à frente de um céu de estrelas. Aquele gramado tinha tradições. Histórias de sangue e batalhas campais com vencedores célebres e perdedores que a história não perdoou. Neste instante, no limiar do duelo entre Danubio e Simão, a grama era de uma cor úmida, verde escura e amarronzada pelo barro de chuteiras que o tempo se encarregaria de tornar históricas.

Por mais que se diga da gravidade que sempre foram os confrontos entre brasileiros e castelhanos, é preciso que se busque a verdade da razão ao invés da emoção, muito embora se saiba que em duelos dessa espécie, neutralidade é sempre difícil. Um dos motivos talvez tenha sido a permanente arrogância de nossos vizinhos mais ao sul do continente com a sua pretensa soberba européia, ao contrário de nós, brasileiros, multirraciais, assumidamente morenos e menos preocupados, que somos em não querer parecer o que a cor da pele nos desmentiria. E nessas histórias (incontáveis!) sempre houve e sempre haverá muita paixão dominando a verdade. A história de Simão na hora do pênalti é apenas uma, entre tantas, que talvez pela peculiaridade dos fatos ocorridos tivesse causado essa quase lenda. Com certeza, se fosse do lado contrário, a lenda se oficializaria e mais um herói nacional se adicionaria aos outros tantos daquela parte do continente, ou seja, a velha arrogância de se confirmarem os melhores em tudo seria convenientemente aproveitada.

Quem conta um conto aumenta um ponto... e a história que narro, talvez não escape desse gesto falho e humano de sempre romantizar ou exagerar o fato narrado. Não evito, até por que o fato em si, sem o bordado das palavras escolhidas, seria reduzido na importância heróica que de fato teve.
        
Importa dizer, que ao lado daquele duelo entre Danubio e Simão, havia  coadjuvantes já citados. De um lado vestindo camisas azuis e brancas, sete brasileiros restantes, tensos. Do outro lado, dez jogadores arrogantes envergando camisas encarnadas. E pra ser mais preciso ainda, permito-me dizer que se ouvia o barulho do vento noturno de agosto com suave assobio de lamento, e mais ainda, creiam, os ouvidos mais apurados provavelmente ouviam o ruflar das asas das mariposas que bailavam lentas entre os postes de luz. Falta dizer, para ser mais preciso ainda, que no ar vagava um cheiro de assado, carregado pela fumaça das churrascarias vizinhas do estádio. 
         Simão pensava no improvável. Além da defesa que deveria tentar, ainda encontrava tempo para pensar nas pernas bem torneadas de uma mulher loura... imaginária, tão voluptuosa em seus pensamentos, que por pouco talvez o fizesse se esquecer do compromisso da defesa quase impossível.
         Nessa hora tão fatal, cada goleiro tem o seu modo de reagir. Existem os que apelam fervorosamente aos santos de devoção (e nesse quesito de santos de devoção, S. Judas Tadeu é o preferido), existem os que escondem o medo num disfarçado morder de lábios ou olhos fuzilantes que encaram o batedor rebatendo o olhar do algoz com uma bravura falsa, e existem aqueles que abrem as portas da mente para que os pensamentos busquem o bálsamo de outras sensações. Simão era como os últimos. Seus pensamentos corriam livres como aquele vento noturno e choroso de agosto.

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         "Macaquitos! Macaquitos!" - um coro de setenta mil vozes alastrou-se das populares para as sociais, como enxurrada incontida, fazendo estremecer as estruturas de concreto do velho estádio. Começou -e se espalhou como essas correntezas indomadas- quando o primeiro brasileiro apontou à saída do túnel. Uma guerra. Cada jogador brasileiro sabia disso. Sabia também que iria enfrentar pontapés com a complacência do juiz, cusparadas na cara, jogadores dopados, a torcida agarrada no alambrado, jogando toda sorte de objetos no campo e a omissão do policiamento. Era sempre uma guerra. Uma verdadeira guerra.           

            Muitos tentaram e ninguém ainda conseguiu explicar profundamente o exacerbado fanatismo das torcidas e jogadores castelhanos. Nenhum estudo psicológico ou sociológico conseguiu, até hoje, elucidar o fenômeno da transformação. Sabe-se apenas que pacatos bancários, comerciantes, professores, médicos, motoristas ou homens de qualquer profissão, transfiguram-se quando a bola rola. Fanáticos. Os jogadores, por sua vez, verdadeiros gentlemen fora do campo, transformam-se em gladiadores bárbaros quando qualquer jogo começa.
       "Sangre! Sangre!" gritava a multidão que ensurdecia os brasileiros e faria tremer qualquer um que não tivesse culhões. Fora sempre assim. Há quase cem anos. Desde que se defrontaram, pela primeira vez, um time brasileiro com um de lá.
        
         Simão sentiu e superou rápido o frio na barriga quando Melo Leal, o técnico - antes de tentar invadir o campo e ser contido pelos soldados e seus cachorros - mandou o preparador físico aquecê-lo. Pompéia, o goleiro titular, contorcia-se de dor com a pisada desleal de Fernandez, o número 11, aos quarenta e sete do segundo tempo, na faixa imponderável dos últimos suspiros daquele jogo. Só restava ele. Simão. Antero, o reserva imediato, nem viajara. Contundido há meses. Tonho, o terceiro goleiro, também se machucara desafortunadamente no treino de segunda-feira. Simão teve que pegar sozinho o primeiro vôo do dia anterior e se juntar aos companheiros. Goleiro dos juvenis, com apenas três meses de clube, foi o último atleta inscrito pelo clube para o campeonato, nem conhecia bem ainda os profissionais, nunca andara de avião, nunca na vida havia pensado em entrar numa "roubada" daquelas. Agarrar o foguete pelo rabo. Era jovem. Dezessete anos.

         Melo Leal olhou-o constrangido e com piedade, quando lhe pediu calma e disse com a voz engasgada: "Vai lá. Defende aquela porra!".
         Simão entraria em campo para tentar o impossível. Defender um pênalti. Pênalti que, se convertido, daria aos "Rojos" o título de campeões da "Libertadores". O time brasileiro havia vencido o primeiro jogo por 2 X 1 no Brasil. Pelos critérios da confederação sul-americana, gol no campo adversário valia o dobro. Portanto, bastava-lhes o 1 X 0.  A torcida deles  já trepava nos alambrados, explodindo foguetes. Cantavam hinos, batiam tambores e faziam um barulho infernal. Simão não tinha escolha. Fora jogado dentro do caldeirão. Fervente.
        
Os jornais locais publicaram manchetes na manhã do jogo: "Victoria o Muerte!", "Sucederá Hoy!", Ganaremos, aunque  sea con sangre!", "Matenlos Rojos!", "Humaredo en la Herradura!".
        Não admitiriam perder, como aliás nunca admitiram, em toda a história. Até o presidente daquele país, declarara a um jornal: "Ganaremos, sin duda alguna.". Opinião que era respaldada por todos. Havia em cada pensamento uma frase que era quase uma oração de fervor: “Esta noche, se puede, se puede...”.
        Tudo indicava que aquela era uma missão impossível. Os brasileiros ouviam os castelhanos dando as entrevistas no rádio e eles não escondiam o otimismo: “Hoy estamos mejor acoplados y las individualidades están respondiendo. Quedar afuera, no!”. 

        Aquele jogo estava sendo uma guerra. Guerra desigual, mas sustentada com bravura. Já houvera dois pênaltis, antes desse dos descontos. Pênaltis escandalosos. Só que a favor dos brasileiros e vergonhosamente não apontados pelo juiz. No primeiro, Sanchez, o número 3, tirou a bola de dentro do gol com a mão, acintosamente, depois da cabeçada de Militão. No segundo, Ortega, o número 6, deu uma tesoura voadora no peito de Altair. Na cara do juiz, dois passos para dentro, da grande área. Quando Altair reclamou, o juiz o expulsou. Os brasileiros jogariam desde os oito minutos do segundo tempo, com dez homens. Nem isso os abalou. Mantiveram a bravura, superaram-se e estavam contando com a sorte. Durante todo o jogo, o adversário atacaria mais, só que afoitamente e em vias do desespero. O tempo corria rápido e aquilo não era bom para os da casa. Até que aconteceu o pênalti.
        Em um instante, tudo pareceu conspirar contra a performance heróica mantida a duras penas.
        O pênalti. Uma vergonha! Pompéia saiu do gol, nos pés do atacante Luna, que fez a cambalhota cinematográfica e caiu se contorcendo como uma minhoca no braseiro. Pura fita! Depois, Hurtado ainda pisaria, sob os olhos do juiz, nas mãos de Pompéia, fraturando-lhe os dedos. Pura maldade! Anselmo reclamou e foi expulso. Bicalho não agüentou. Deu uma peitada no juiz e também levou vermelho. Só sobravam oito jogadores - abalados, confusos e prestes a se deixar abater pela tragédia.
         Confusão. Avelino Machado, o dirigente, invadiu o campo para protestar. A polícia o engravatou e ele saiu arrastado e levando bordoadas, perto da boca ávida dos cães “capa-pretas”. Tiveram que atender Pompéia no campo. Está na regra. Tempo para Simão se aquecer. O time brasileiro precisava ganhar tempo. Melo Leal gritava para os seus manterem a calma e sua voz era abafada pelas setenta mil vozes que cantavam. Pompéia foi retirado com violência e pouco caso pelos maqueiros e Simão entrou em campo fazendo o sinal da cruz. Ia para o fogo. Levava consigo uma toalha enrolada e as luvas descalçadas, para ganhar tempo. Aquilo provocou a torcida, que reagiu disparando rojões para baixo, quase acertando o goleiro. Nova parada. A polícia fazendo de conta que controlava a torcida. Os cães babavam e latiam ferozes. O juiz esperava. O jogo parado, talvez estendesse mais os descontos, mas era necessário esfriar o adversário. Jurandir Carvalho, o delegado brasileiro da sul-americana, entrou em campo com a prerrogativa de autoridade. A polícia tentou prendê-lo e foi contida pelo dirigente Juan Pablo Ortiz. Juan Pablo sabia que Jurandir era influente na FIFA. Jurandir prometendo incluir as irregularidades no relatório, interditar o campo, e os dirigentes foram confabular. Duraria mais um bom tempo aquela interrupção.
         Nesse intervalo, Danubio López, o número 10, aproximou-se da bola parada na marca do pênalti e ficou olhando para Simão com um sorriso de ironia. Seria ele o batedor. Ele, o carrasco. Simão, o condenado. Com cinismo, ficou encarando Simão. Um pibe... e negro. Fez um "psiu" para Simão e apontou o dedo para o canto esquerdo, prometendo chutar ali. Rindo. Danubio López perdera a conta de quantos goleiros já haviam tremido na sua presença. Era um ídolo nacional. O maior nome da seleção e em vias de se transferir para o Milan, pela estratosférica soma de treze milhões de dólares. Fazia o último jogo defendendo a camiseta roja e queria se despedir como campeão.
         Em outras circunstâncias, fosse Simão um garoto classe média e urbano, até se assustaria. Simão não era. Criado no subúrbio, no meio dos tiroteios da favela, desde os oito anos pingente de trens da Central, conhecendo como conhecia as agruras da vida, não se assustaria com aquele branquelo, metido a besta, com cara de tangueiro e cílios longos de veado. Não seria isso que assustaria Simão. No fundo, no fundo, até começava a gostar daquela bagunça. Já estivera, em outras situações da vida, em enroscos piores. Era hora de mostrar "quem tinha mais garrafa vazia para vender".
         E foi encarando o sorriso de Danubio que Simão cumpriu o seu ato. Calmamente, enquanto os dirigentes discutiam no círculo central, foi lá no fundo da rede, desenrolou a toalha que trouxera e pegou uma banana. Caturra.
Sentou-se no chão, no pé da trave, encarando Danubio nos olhos, e começou a descascá-la, vagarosamente, dizendo com um portunhol arrevesado para o Danubio atônito: "És assim que jo voy comer su mujer... tirar su roupa. Hoy, después del juego. Em mi hotel. Coñeço su mujer. Já pus mi pau muchas veces em sus coxas. E eja já chupou muchas veces mi pau".
          O inusitado da cena de um goleiro comendo banana no limiar de um pênalti causou um rebuliço nos fotógrafos e periodistas  postados atrás do gol. Sob o espocar dos flashes, Simão descascava a banana, com o zelo que se tira a camisola da mulher amada. Lambia a banana como se lambesse a perna da mulher de Danubio...
         Não existe nenhuma menção no livro de regras do futebol, a não ser que, por rigores, o juiz considere ato anti-desportivo, a proibição de que o jogador coma alguma coisa durante o jogo. Se lhe é permitido beber água e chupar gelo para matar a sede, é de se supor que seja também permitido comer alguma coisa para matar a fome. Não é comum, mas também não é impróprio. Além do mais, o jogo estava parado e o juiz e os bandeirinhas conversavam no meio de campo com os dirigentes. Aliás, há mais de quinze minutos.
         Danubio, lívido, não acreditava no que ouvia. Aquele fedelho, pobre, negro, desaforado e brasileiro, ofendia a sua esposa e a si, na frente dos seus companheiros, dos jornalistas, debaixo dos céus de sua pátria. E ainda fazendo com que ele servisse de chacota para os outros jogadores brasileiros, agora se enchendo de razão e rindo das zombarias daquele macaquito. Ele, logo ele, Danubio López, "El Gran Capitáin", que o mundo inteiro reverenciava, a maior glória esportiva de seu país. Ele, acostumado que era a ser chamado "Dios" pelos compatriotas, que morreria ensangüentado se preciso fosse, "defendiendo su  bandera"...
         Como todo latino sensível e dramático, a simples menção de que na testa lhe estufassem chifres passava a ser uma questão de honra ferida. O sorriso cínico que portava antes desmanchava-se, dando lugar a uma careta de ódio. Contido por Gualtieri, o número 7, ameaçou partir para cima do moleque, que sorria um sorriso debochado de dentes muito brancos. Danubio, arrastado para trás pelo companheiro, ainda conseguiu gritar com a voz contaminada de raiva: "Te mato! Te mato!". Limpando os dentes com a unha, Simão ainda diria, só que em português: "Se tu bobear, eu te como também!" Os companheiros de Simão, insuflados pela coragem do pivete, encheram-se de brios e descobriram um líder jovem, brotando de um campo minado.
        Se o juiz não tivesse apitado anunciando o reinício do jogo, é provável que o pau tivesse comido ali, naquela hora. O próprio Gualtieri, que segurara Danubio, chegou a fazer menção de correr de encontro aos brasileiros soqueando e chutando, quando Peroba, o lateral brasileiro, elogiou-lhe a bunda.
         O árbitro veio correndo para a área, conferindo a bola na marca e a posição de Simão debaixo das traves. Simão calçou as luvas. Sentiu que tinha enervado Danubio, quando o viu aspirar o ar antes de tomar a posição de batedor. Danubio estava vermelho de raiva, mas também - via-se - tremia. O lábio superior franzido numa contração involuntária do músculo. Simão encarando-o com um sorriso, bateu as mãos no peito, provocando-o, dizendo baixinho: "Aqui! Chuta aqui, corno de mierda!"
         Um silêncio de expectativa sobre o estádio. Setenta mil pessoas emudeceram, como se alguém ou alguma coisa, com um gesto, assim ordenasse. Emudeceram, guardando o grito para explodir tão logo o pênalti fosse batido. Só se ouvia o barulho de fósforos e isqueiros acendendo cigarros, salpicando as arquibancadas de estrelas fora de hora. O olho de Simão encarando os olhos de Danubio, que não agüentaram o duelo, abaixando-se.
         Os locutores já se preparavam para esparramar, com fôlego de carretel, o grito de gol. Quem não estava no estádio, encarquilhava-se de tensão frente aos aparelhos de tevê e rádio. Muitos já comemoravam por conta. Danubio López nunca errava. O país com os olhos cravados em Danubio.
         O juiz apitou. Danubio correu para a bola   
         Muitos espremeram os olhos. Muitos beliscaram-se. Muitos trincaram os dentes.
          O chute arrancou um naco de grama e saiu mascado como uma tacada sem giz. A bola fraquinha foi borboleteando se aninhar carinhosa no peito de Simão. Danubio perdeu o pênalti e sentiu o céu desabando em sua cabeça. Abraçado pelos companheiros, Simão, de  dezessete anos, disparou a gritar: "Eu sou foda! Eu sou foda! Jo soy fueda!"
         Um "Oh!" comprido e caudaloso escorreu pelas arquibancadas como se houvessem sido abertas as torneiras das expressões desesperadas. Danubio, transtornado pela frustração, enfiou a cara na grama embarrada e passou a soquear a própria cabeça enlouquecido, ciente, talvez, de que: "Milan, nunca más". Arrastaram-no chorando para a beira do campo, sob uma tempestade de vaias. O torcedor não perdoa. Já diziam os sábios que "dia de muito é véspera de pouco". Uma máscara dolorida de abatimento estampada na face de cada um daqueles que envergavam as camisas vermelhas. Um tango. Um tango doloroso, dramático e cruel, seria a trilha sonora adequada para aquele momento. Choravam.
         O juiz olhou para uma lateral do campo. Procurando Juan Pablo, o dirigente. Orientando-se. Temendo as influências e ameaças do Jurandir na FIFA, o dirigente fez um sinal com a mão que queria dizer: "Acaba logo essa merda!". Feito isto, explodiu a garrafa plástica de água mineral no muro de concreto.               
              Antes, a bola devolvida por Simão fora isolada por um zagueiro tonto para trás dos muros das churrascarias. Um silêncio fatal. Uma lufada de vento assobiou uma música triste. Se não fosse exagero dir-se-ia que dava para ouvir as mariposas mergulhando em vôo suicida contra as luzes dos holofotes.            
              O jogo acabaria em um minuto e doze segundos, com os brasileiros retendo a bola e fazendo-a correr de pé em pé. Ouvia-se (isso é certo) o barulho da bola roçando o gramado úmido, tamanho era o silêncio.
A torcida, engasgada com a guerra perdida, engoliu o sapo rugoso da derrota -conformando-se inacreditavelmente- abalada que fora pela inesperada defesa do goleirinho negro. Podia-se ouvir também o tom lamentoso dos comentaristas de rádio locais, como um que dizia sem esconder a voz embargada de soluços: “El baile previsto com todas las letras y en mayúsculas se convertió en una milonga sofrida. Parece um sueno... Danubio no fue Danubio. Fue apenas una palida imagen del gran capitáin. Las personas sedientas de festejo... para las que todo era un grito de orgullo nacional, quedaram-se  atónitas ante el hecho irreversible. El gran favorito se derrumbó. Quien tiene una respuesta para explicar esto? Quien tiene? Um pibe, solamente um pibe como ningún de nosotros lo hubiese soñado, fue la razon del suplicio de los rojos.... Es muy amarga la derrota... muy amarga!”.

Os brasileiros campeões na casa do inimigo. Jogavam Simão para cima, faziam festa com o herói da partida, chamando-o de "Fodão". A taça reluzente passava de mão em mão e os brasileiros cobriam-na de beijos. Simão sorrindo, com seus dentes brancos de marfim, pensava no seu minuto de fama, sem saber que acabava de inscrever naquela noite - da forma mais heróica possível - o seu nome na história.  


Importa pouco o que foi feito de Simão... talvez devesse importar mais... mas ele foi um entre tantos heróis dos estádios que passaram pela história com a rapidez de um vento ou como uma efeméride radiosa de apenas uma só noite. No entanto, enquanto essa história for contada, quantas vezes venha a ser contada, com mais ou menos filigranas de exagero, lá estará Simão, desafiando Danubio, vencendo Danubio, que é a sua forma de estar perene na história... mesmo que por uma noite apenas... “una noche inolvidable”, como diriam os castelhanos. E essa história que tomou o trajeto de lenda, poderia ser uma história comum, não fosse o jogo ter sido entre quem foi, não fosse o improvável herói, não fosse o inusitado da estratégia que um usou para bater o outro no duelo. Talvez tivesse sido mais justo que a carreira vitoriosa de Simão continuasse, assim como aquele vento daquela noite de agosto com sua voz que imitava o desespero das almas. Vento que continuou aquela noite, madrugada adentro, mesmo depois que apagaram-se os refletores, a grama deitada pelo barro das chuteiras levantou-se recuperada com o sereno da madrugada, as chaminés das churrascarias sopraram seu último hálito de fumaça e as vozes das torcidas foram se apagando à medida que cada um se recolhia. De certo modo a grama amassada, a fumaça que vagou tonta no céu soprada pelo vento de agosto e cada soluço daqueles que se entristeceram com o resultado, foram figurantes daquela passagem da história, de um jogo de bola, do momento fatal da cobrança de um pênalti... da noite gloriosa de Simão.

terça-feira, 5 de março de 2013

54- O FINAL




54- O FINAL


       
        Estava escrito. Nada podia ser feito...
S... foi, com certeza, a última participação de Chiara em minha vida. Surpreendente, porque eu pensava que o ciclo se encerrara, quando eu tomei o ônibus na rodoviária de Beagá, a caminho do Sul.
        Foi no finalzinho de julho, no ano de 1978, um domingo, depois do almoço. Sai sozinho para almoçar fora, porque me deu preguiça de fazer alguma coisa em casa. Fui ao restaurante da Pescal, um dos melhores da cidade à época. Encontrei, naquela manhã, Sérgio e Viviane, um casal amigo que me convidou a sentar com eles. Agradeci e recusei, porque matutava com uma coisa que eu não sabia exatamente o que era. Havia sonhado de forma intermitente com Chiara... seis meses depois. Alguma coisa me fazia pensar muito nela, aquela manhã. Preferi ficar sozinho. Pedi, inclusive, ao garçom que não se apressasse; que me trouxesse antes um drinque. Precisava por os pensamentos em ordem.
        Morava, nessa época, no meu primeiro apartamento em Rio Grande: na rua General Vitorino, 562, um prédio pequeno de dois andares. Eu morava no segundo, e uma escada lateral dava acesso à minha casa, escada que era isolada por uma porta no nível da rua.
        Quando eu cheguei do almoço e destranquei a porta, vi o bilhete no chão. Pensei inicialmente em Dinei e Neiva ou em Renato e Maria José, casais amigos. Ou então em Veroci, Helena ou Ieda, que também conviviam comigo. Não era nenhum deles.
       
        “Estou em Rio Grande, no Hotel Charrua. Vim ver você. Procure-me. Assinado: S....”
       
        S... era uma boa amiga de Minas, com quem, circunstancialmente, eu havia tido um pequeno caso muito agradável, um pouco antes do meu namoro com a I... . Conheci-a como amiga de Cristiane, uma pessoa para quem eu havia dado aulas particulares de desenho em 1977. Ela havia sido modelo em nossas aulas, ficamos amigos, resolvemos sair juntos um dia, e foi muito legal. Éramos maduros e ficamos naquela noite e em outras, sem compromissos maiores. Gostávamos da companhia um do outro. Eu nunca havia pensado que ela pudesse vir me ver.
        Não quero com isso dizer que fosse raro eu receber visitas de pessoas de Minas aqui no Sul. Em seis meses, eu já recebera a visita de Lúcio, meu mano, e de Sandra Cristina e Jim, seu namorado americano. Não pensava, no entanto, em uma visita amorosa desde que terminara com I e a visse voltar, numa manhã chuvosa, para Minas. Eu ainda não pensava em ter alguém aqui em Rio Grande. Literalmente, eu estava dando um tempo. Contudo, atravessando esse período carente, eu gostei de que ela tivesse vindo.
        Busquei-a no hotel. Pegamos suas malas, e ela foi se hospedar em minha casa. Criou-se o clima: o vinho daquela tarde, a lareira acesa por causa do frio, Piazzola na vitrola... Ela ficou em minha casa por sete dias. Ela cuidou de minha casa, esperou-me carinhosamente com almoços prontos, lavou meus cabelos no banho... Mas eu não queria aquilo. O tempo que eu precisava ter dado em minha vida, havia sido interrompido com aquela visita. Sensível, ela entendeu. Uma manhã deu-me um beijo, deixou um bilhete e voltou para Minas.
        Eu precisava tirar a dúvida. Senti que aquela coisa toda podia ter a mão de Chiara. Liguei para Maria Goretti, um dia depois de S... ter ido embora.
        Eu não sabia como é que se falava com Chiara pelo telefone. Até então nossos encontros haviam sido feitos de forma presencial. Eu não tinha certeza se conseguiria.
        Do outro lado da linha, Maria Goretti atendeu. Quando eu disse que era eu, imediatamente Chiara assumiu a interlocução. Não precisei vê-la, não precisei de sentir o perfume; era ela, eu tinha certeza.
        - Alô, amigo querido...
          Mesmo eu tendo ligado com esse objetivo, eu não estava preparado, eu acho, para o caso de ser ela quem realmente me atendesse.
        - Oi. Tudo bem com você?- respondi emocionado.
        - Vou ser rápida..., os pais de Maria Goretti estão dormindo e podem acordar. Sei que você está ligando por causa de S.... Eu a mandei... sem que ela soubesse, é claro. Senti que você estava muito só e sabia que se deprimiria se eu não fizesse alguma coisa. Foi para o seu bem.
        Fiquei mudo do outro lado da linha. Não sabia o que dizer. Ela tomou novamente a palavra.
        - Mais uma vez, eu vou me despedir de você. Agora será definitivo. Breve você vai encontrar o amor de sua vida e terá a sua família. Sei agora que você estará preparado. Te amo muito... vou desligar.
        Do outro lado, o telefone emudeceu. Fiquei ainda uns cinco minutos na cabine da telefônica. Pelo vidro do prédio, a garoa incessante e o vento forte demarcavam o meu primeiro inverno rio-grandino. Sai dali e atravessei a Praça Tamandaré entre bêbados e prostitutas. Era meia-noite. Aquela lugar era perigoso.
       

Em casa, acendi a lareira, abri uma garrafa de vinho e pus Misty para tocar. Fiquei ali, à beira do fogo. Arrastei um cobertor, tirei os sapatos e dormi como eu estava: de roupas. Sonhei com o jardim de labirintos. Pela primeira vez, iluminado por um sol matutino com um céu de azul intenso e sem nuvens. Misty tocava no meu sonho como se fosse uma trilha sonora trazida pelo vento. Chiara não veio se encontrar comigo dessa vez. Mas era como se ela estivesse em toda parte, nas plantas, no céu, nos ares, na borboleta dourada que em câmara lenta passou frente aos meus olhos, pousou em uma flor e depois, em um volteio gracioso, tomou o rumo do azul, sumindo como uma poeira luminosa no infinito.



FIM

segunda-feira, 4 de março de 2013

53- Rio Grande





53- RIO GRANDE





        Estava chegando o momento que Chiara havia previsto para nossa separação. Aquilo me deixava triste. A princípio eu tentara desafiar a previsão de Chiara a respeito do assunto de me mudar para o Sul. Cheguei mesmo a recusar o primeiro chamado de Zilá, em 1977. Em meu lugar, viria uma colega: Maria José. No final daquele ano, meus chefes da Emater, “me encheram o saco”. Pedi para sair. Telefonei para o Sul dizendo que aceitava vir. Antes, eu que conhecia apenas os estados que faziam fronteira com Minas, fui ao Acre, junto com meu amigo Guido Heleno, dar um curso de Artes Gráficas. Pela primeira vez, uma viagem de avião. Conheci uma nova realidade do Brasil, o Brasil do interior, que mais tarde eu ia rever no filme “Bye, bye, Brasil” de Cacá Diegues. Era o início do tempo das discotecas e dava pena ver arremedos dessas casas no interior acreano. Descobri ali uma outra cara do país.
        Voltei do Acre a tempo de passar o Natal e o Ano Novo com meus pais e meus irmãos. A família estava enorme com a adição de meus sobrinhos, treze ao todo nessa época. Minha mãe pediu um mapa do Brasil para ver a cidade de que eu falava. Assustou-se com a imensa distância. Eu não sabia, quando me despedi de minha mãe, que era a penúltima vez que eu a via.
        Viajei com I..., minha namorada. Na rodoviária de Beagá, no início da manhã, foram despedir-se de mim, meu amigo fiel Aluízio e sua mulher Lês-Sandar. Estava também Celso, meu colega de pensão.
        A longa viagem em ônibus leito serviu para que eu viesse conhecendo o Sul. Cheguei a Rio Grande num domingo, cinco de fevereiro, domingo de Carnaval. Fui recebido por Renato Modernell, um amigo novo. Levou-nos para conhecer o carnaval de rua da cidade. Em estado de choque, dei uma entrevista na Rádio Minuano, rádio local. Renato, amigo dos radialistas, propôs que eles me entrevistassem. Queriam saber a minha opinião sobre o carnaval de Rio Grande, como recém-chegado. Dei uma das mais confusas entrevistas de minha vida. Jantamos depois no “Restaurante e Café Dalila”, comendo uma chuleta com batatas, cheia de confetes, por obra do animado “Bloco da Cobra”, que invadiu o recinto cantando marchinhas. No dia seguinte, eu e I... fomos à praia conhecer o mar. Vimos a água achocolatada pela mistura ocasional com o barro da Lagoa dos Patos, imprópria para o banho. Além disso, aquela manhã ventosa, estava impressionantemente fria. Eu me acostumaria depois com os “humores” do mar do Rio Grande.
               
        No dia treze assinei contrato com a Universidade. Fernando Pedone, o reitor, a quem me levaram a conhecer nesse dia, disse-me que não gostava de arte moderna.
        As aulas começaram em março. No meu primeiro contato com a turma de alunas, de um lado eu olhava para aquelas trinta mulheres, que, pelo outro lado, também me olhavam com sorrisos e olhos arregalados. Meu forte sotaque mineiro era a causa daqueles olhos. Ficaram todas, minhas amigas depois. A primeira turma, a gente nunca esquece.
        Conheci, nos meus primeiros dias de Universidade, Dinei, meu futuro compadre, à época casado com Neiva, uma aluna. Conheci também um casal mineiro, Washington e Valcléria. Parecia que não me era possível esquecer Minas Gerais, mesmo morando quase na fronteira com o Uruguai. Aliás, no feriado de primeiro de maio, fui levado por Dinei e Neiva para conhecer a fronteira: cidade com uma rua de duas pistas, demarcando, de um lado, o Brasil (Chuí); e do outro, o Uruguai (Chuy).
        Levaram-me também ao Forte São Miguel. Lá um bando de moças excursionistas, em alarido como uma vez em Ouro Preto, me chamou a atenção. Repetia-se como um filme, o momento do domingo ouro-pretano: um bando de pombos, no pátio central do Forte, levantou-se ruflante, à medida que as moças alegres desgrudaram-se da guia da excursão. À frente do grupo, uma moça me olhou profundamente. Pelo uniforme colegial, pareceu-me uruguaia. Mordia o lábio inferior delicadamente, franzia o cenho e me sorriu com olhos brilhantes. Captei, na leve brisa, um aroma evanescente de gardênia. Os pombos em círculo pareciam voar em câmara lenta. O barulho das asas batendo parecia o de um disco em rotação errada. Fiquei estático, esperando tudo se assentar, o tempo voltar ao ritmo normal, aquele grupo de vozes e sons das aves se acalmar. Sentei-me no muro de pedra e chorei. A adolescente uruguaia voltou-se mais uma vez para me olhar. Disfarcei acendendo um cigarro e colocando óculos escuros para meus amigos não verem meus olhos vermelhos...